O DESFILE DOS DESGRAÇADOS
Todos têm que obedecer:
o que tanto se temia chegou finalmente.
Ninguém está seguro,
o ambiente é irrespirável,
andamos de leve, pisando mansinho,
e a noite não oculta mais nada.
Os que espiam não sabem se são espiados,
mas espiam esperando salvar-se,
vendendo por um prato de lentilhas
os olhos, os ouvidos, o dedo indicador.
Retinem nas ruas os tacões
das botas de couro
dos que mandam em nós.
Silêncio… Ninguém pode falar, a não ser
quando for convocado para dar depoimento.
Todos têm que dar depoimento,
denunciar uns aos outros,
degradar-se, humilhar-se, perder a dignidade,
renunciar de joelhos à condição humana.
—— Abram os domicílios! Entreguem-nos seus filhos
e filhas, suas mulheres… Tudo isso é o não-ser.
Somos nós que mandamos… queremos saber
tudo —— gritam os homens de botas, de farda olivácea,
brandindo o chicote.
Placte!… Placte!… Placte!…
O látego é longo
e sua língua de fogo
atinge mesmo o mais afastado.
Então vem um desfile
de 80 milhões,
cabeças curvadas,
apanhando nas costas,
homens esfarrapados, famintos,
mulheres descalças, seminuas,
os seios de fora,
ante o olhar dos verdugos,
crianças e moças e moços e velhos já trôpegos
passando, passando, passando…
e o chicote batendo.