O CORAÇÃO FORA DO PEITO
O coração fora do peito
feriu-se na ponta da lança,
mas o guerreiro não morreu.
Esvaiu-se frente o desconhecido,
aço-lâmina-baionetas
que traspassam os olhos dos que se escondem
frente o girassol que os procura.
O juiz,
em sua toga
bate o martelo
sobre a lápide:
— Não há corpo,
não há prova,
não há crime...
Os anjos,
feito cisnes,
passeiam no lago
de sangue sobre a calçada,
duendes escondem-se do ocaso
procurando um refúgio
nas árvores que ainda resistem.
O coração fora do peito
feriu-se quando o amolador de facas
afiava sua lâmina
translúcida, na esquina.
Voam estilhaços pelos ares,
despedaçando os sentimentos
escondidos nas entranhas
sobre as almas de crepom.
O coração fora do peito
feriu-se quando atirador
espalhava o estanho
de mercúrio incandescente
ante o músculo pulsante
que perpetua a vida
em cadência ininterrupta
de uma existência passageira.
Correm as virgens com medo
de perder o cabaço,
correm os cadáveres que escondem
as tíbias-tortas-esbranquiçadas,
correm os padres segurando
a batina entre as pernas,
correm os poetas marginais,
correm,
correm,
correm,
que as balas assassinas
vão sangrar as suas carnes.
O carregador de cadáveres
traz um peso sobre os ombros
descarnados em penitência,
que levam em desgraça
os mortos sem nome,
os corpos sem dono,
as sepulturas sem cruz
abertas pelas cercanias
para oferecer suas partes
aos necrófilos nas sombras.
O coração fora do peito
feriu-se nos espinhos
quando a lua debruçava
seu pálido manto de lágrimas
e os cristais fosforescentes
faziam adormecer os lábios
dos demônios escondidos.
Não se diz agora em voz alta
que os infernos vão se instalar
frente os olhos dos meninos?
Uma perene dor invade
o soldado com sua arma
assassina,
assassina,
assassina,
pronto para impedir
que seu coração cultive
sentimentos
e piedade.
Os jardins sem primavera
abrem-se em flores púrpuras
ensangüentadas procurando
os meninos na Lista dos Mortos
que cobre os corpos com lágrimas
das mulheres enlouquecidas
que cantam canções entrecortadas
de soluços
e agonia.
O coração fora do peito
feriu-se na primavera
entre coturnos
e espinhos,
lanças,
facas
e baionetas,
onde só os que ousam
enfrentar os fantasmas
podem compreender a aventura
do amor sobre todas as coisas.
O coração fora do peito
feriu-se,
feriu-se.
feriu-se,
quando procurava a Liberdade.
Não se diz agora em voz alta
que os últimos serão os primeiros?
Ponte Nova-MG, 18.5.70