O caderno de poemas

Maciel de Aguiar

O CADERNO DE POEMAS

 

 

O caderno de poemas
está guardado no sótão,
onde ninguém se atreve
a censurar-lhe as palavras.
cortar-lhe as sílabas,
amputar-lhe os sentimentos,
cercear-lhe os versos
a todos e ninguém…
Os marimbondos em prontidão,
fiéis guardiões dos proscritos,
estão a postos com ferrões
à espera dos que cassam
as almas dos venturosos,
acorrentando-os aos pés
para que nunca mais voltem
a importunar os senhores 

soberanos que repousam
nos palácios do planalto
sobre as vidas dos errantes.
O caderno de poemas
abre-se à noite de lua grande
sobre os telhados encardidos
dos casarões do Cacete.
Os fantasmas que vagam
acotovelam-se à leitura
das mortes relatadas:
versos cortando a alma.
mãos aflitas descrevendo em sangue 

as dores infernais…
Muitos ainda se lembram
dos sofrimentos sentidos
quando insistiram em abrir
a boca frente o carrasco
que indagava pelos crimes
hediondos cometidos.
Os animais ouvem a tudo:
versos macabros assustadores

passeando as palavras
pelas linhas do almaço; 

escorpiões assassinos; 

morcegos famintos;
aranhas negras
intimidam-se diante
daqueles corpos descritos 

pelos próprios fantasmas. 

O caderno de poemas
abre-se frente o destino 

das vidas que procuram 

uma explicação plausível 

a todas as tragédias,
mas os poemas apenas 

falam das dores
traspassando o peito
sem ninguém que possa 

acariciar-lhes as feridas 

abertas ao vento: 

Joguem sal!

Joguem ácido!

Joguem veneno!,
gritam os algozes
aos ouvidos atormentados.

O caderno de poemas
tenta fechar as páginas,
onde o fantasma do morto 

procura pelo passado,
impedindo que sofra
duplamente os castigos.
Mas ele não se contém:

quer vê-lo assim mesmo,

em versos feito lâmina

dilacerando a alma

como num espelho atávico.

Aqui, alguém é levado

a lamber os excrementos

dos generais coléricos;

ali, se penduravam de cabeça

para baixo os desvalidos;

adiante, são versos aos sediciosos, 

os que perderam os testículos;

na próxima página, canções

aos que perderam as unhas:

Continue… 

Continue… 

Continue…,

imploram os olhos em desespero 

a descobrir os assassinos
no momento final.
O caderno de poemas
está guardado no sótão
entre animais da terra
e pobres almas vagantes,
que procuram explicação
para tantas dores sofridas,
assustando-as com versos
que ninguém se atreverá
a ler sem vomitar as entranhas,

como os que são levados

ao suplício frente os assassinos.

O caderno de poemas 

deixa marcas dos que escrevem

a todos e ninguém,

como tatuagens aos séculos

em versos de angústia

e ressentimentos eternos.

Nele, nenhum crítico

encontrará a poesia

para se masturbar em elogios

diante dos que não enxergam

este tempo vivido;

nenhuma misse dirá

que lhe repousa a cabeceira;

nenhum editor o mandará

ao prelo em edição;

nenhuma livraria o terá

nas prateleiras com a glória

dos que podem ser exibidos.

O caderno de poemas 

dos poetas que cantam 

este tempo de martírio 

servirá apenas à dor
dos que procuram no breu 

os seus desaparecidos: 

versos que retratam 

o que não é permitido; 

poetas cambaleantes-malditos 

que escrevem a todos

o que nunca será lido, 

registro de uma angústia
que só o tempo apagará
da cabeça ceifada dos homens. 

O caderno de poemas
esconde no sótão da memória

o nosso tempo perdido… 

                   

 

                    Rio de Janeiro, 11.6.74

 

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