O CADERNO DE POEMAS
O caderno de poemas
está guardado no sótão,
onde ninguém se atreve
a censurar-lhe as palavras.
cortar-lhe as sílabas,
amputar-lhe os sentimentos,
cercear-lhe os versos
a todos e ninguém…
Os marimbondos em prontidão,
fiéis guardiões dos proscritos,
estão a postos com ferrões
à espera dos que cassam
as almas dos venturosos,
acorrentando-os aos pés
para que nunca mais voltem
a importunar os senhores
soberanos que repousam
nos palácios do planalto
sobre as vidas dos errantes.
O caderno de poemas
abre-se à noite de lua grande
sobre os telhados encardidos
dos casarões do Cacete.
Os fantasmas que vagam
acotovelam-se à leitura
das mortes relatadas:
versos cortando a alma.
mãos aflitas descrevendo em sangue
as dores infernais…
Muitos ainda se lembram
dos sofrimentos sentidos
quando insistiram em abrir
a boca frente o carrasco
que indagava pelos crimes
hediondos cometidos.
Os animais ouvem a tudo:
versos macabros assustadores
passeando as palavras
pelas linhas do almaço;
escorpiões assassinos;
morcegos famintos;
aranhas negras
intimidam-se diante
daqueles corpos descritos
pelos próprios fantasmas.
O caderno de poemas
abre-se frente o destino
das vidas que procuram
uma explicação plausível
a todas as tragédias,
mas os poemas apenas
falam das dores
traspassando o peito
sem ninguém que possa
acariciar-lhes as feridas
abertas ao vento:
– Joguem sal!
– Joguem ácido!
– Joguem veneno!,
gritam os algozes
aos ouvidos atormentados.
O caderno de poemas
tenta fechar as páginas,
onde o fantasma do morto
procura pelo passado,
impedindo que sofra
duplamente os castigos.
Mas ele não se contém:
quer vê-lo assim mesmo,
em versos feito lâmina
dilacerando a alma
como num espelho atávico.
Aqui, alguém é levado
a lamber os excrementos
dos generais coléricos;
ali, se penduravam de cabeça
para baixo os desvalidos;
adiante, são versos aos sediciosos,
os que perderam os testículos;
na próxima página, canções
aos que perderam as unhas:
– Continue…
– Continue…
– Continue…,
imploram os olhos em desespero
a descobrir os assassinos
no momento final.
O caderno de poemas
está guardado no sótão
entre animais da terra
e pobres almas vagantes,
que procuram explicação
para tantas dores sofridas,
assustando-as com versos
que ninguém se atreverá
a ler sem vomitar as entranhas,
como os que são levados
ao suplício frente os assassinos.
O caderno de poemas
deixa marcas dos que escrevem
a todos e ninguém,
como tatuagens aos séculos
em versos de angústia
e ressentimentos eternos.
Nele, nenhum crítico
encontrará a poesia
para se masturbar em elogios
diante dos que não enxergam
este tempo vivido;
nenhuma misse dirá
que lhe repousa a cabeceira;
nenhum editor o mandará
ao prelo em edição;
nenhuma livraria o terá
nas prateleiras com a glória
dos que podem ser exibidos.
O caderno de poemas
dos poetas que cantam
este tempo de martírio
servirá apenas à dor
dos que procuram no breu
os seus desaparecidos:
versos que retratam
o que não é permitido;
poetas cambaleantes-malditos
que escrevem a todos
o que nunca será lido,
registro de uma angústia
que só o tempo apagará
da cabeça ceifada dos homens.
O caderno de poemas
esconde no sótão da memória
o nosso tempo perdido…
Rio de Janeiro, 11.6.74