O Boi Dialético
Não é fácil para a língua
encardida de esperança,
sair no sol pra lamber
o sal da perseverança.
Mas o boi sai. Como é vasto
o campo, para encontrar.
Narinas fundas, fareja.
Sabe que o sal tem resíduos.
Resíduos são, mas que guardam
a força da explicação
dessa terra que é do boi,
que seus olhos comerão.
De suas entranhas a ciência
já lhe ensinou que é no escuro
que o sol rende: em sua nuca
o calo do tempo é duro.
Sobre o chão da servidão
é pisar firme, e avançar
sem pressa, para que as juntas
não se verguem no chegar.
No olhar seco, amarelento,
mas que de ver não se cansa,
nada leva que aparente
o fulgor de uma esperança.
Mas na retina, onde guarda,
e desde os currais da infância,
as dores todas que viu,
late o furor de uma lâmina.
No campo escuro dos bois,
sua certeza rebrilha.
Vai sabendo. O campo é vasto,
é preciso abrir a trilha.
II.
Há os outros, bois desperdidos,
que em descaminhos se encerram
no campo da vastidão.
Extraviados de si mesmos,
não sabem por onde vão.
Não pastam mais a esperança,
capim difícil de achar.
Pastam rancores, escárneos,
talos podres, falsidão.
Anoitecidos por dentro
ao meio-dia ruminam
palavras que nem de esterco
servem para ajudar o chão.
Vindos de muitas manadas
que se extraviaram, persistem
em cultivar esqueletos
de valentes garanhões
e em mostrar, mas ninguém vê,
as marcas de rez ferrada.
Ressentidos, não repartem
nem o mormaço em que abrigam
sua fofa solidão,
seus malogros e seus medos.
E escarnecem da canção
que persevera no campo,
vinda lá das bandas verdes
do varadouro que leva
ao poço onde espera o sal.
III.
Tempo de brasa, o boi.
Quando é vindo mais um dia,
o boi confere o tempo.
E se a manhã prolonga mais a noite,
ele brama a sua esperança,
orvalho na espessura.
O leito do rio fede.
O capim, áspero, come
a primavera da fome.
A trilha é longa,
vai levar tempo chegar.
Mas persevera. O campo vai ser verde.
Não vai sozinho. Outros chegarão.
Mas vai sabendo: são poucos
os que vão seguir seguros
do desamparo do chão,
e muitos os que dos berros
turvos, túrgidos, não vão
ir muito além.
Só minguados
chegarão, hão de chegar,
para o tempo dos relâmpagos na barra.
A lâmina acesa,
malferido se levanta.
O campo vai ser verde.
No campo escuro dos bois,
ele avança devagar.
E quem vai com ele, vai
levando, além da ciência,
amor, faro e paciência.
Buenos Aires,
verão de 1974.