O boi dialético

Thiago de Mello

O Boi Dialético

 

 

Não é fácil para a língua

encardida de esperança,

sair no sol pra lamber

o sal da perseverança.

 

Mas o boi sai. Como é vasto

o campo, para encontrar.

Narinas fundas, fareja.

Sabe que o sal tem resíduos.

 

Resíduos são, mas que guardam

a força da explicação

dessa terra que é do boi,

que seus olhos comerão.

 

De suas entranhas a ciência

já lhe ensinou que é no escuro

que o sol rende: em sua nuca

o calo do tempo é duro.

 

Sobre o chão da servidão

é pisar firme, e avançar

sem pressa, para que as juntas

não se verguem no chegar.

 

No olhar seco, amarelento,

mas que de ver não se cansa,

nada leva que aparente

o fulgor de uma esperança.

 

Mas na retina, onde guarda,

e desde os currais da infância,

as dores todas que viu,

late o furor de uma lâmina.

 

No campo escuro dos bois,

sua certeza rebrilha.

Vai sabendo. O campo é vasto,

é preciso abrir a trilha.

 

II.

 

Há os outros, bois desperdidos,

que em descaminhos se encerram

no campo da vastidão.

Extraviados de si mesmos,

não sabem por onde vão.

 

Não pastam mais a esperança,

capim difícil de achar.

Pastam rancores, escárneos,

talos podres, falsidão.

Anoitecidos por dentro

ao meio-dia ruminam

palavras que nem de esterco

servem para ajudar o chão.

 

Vindos de muitas manadas

que se extraviaram, persistem

em cultivar esqueletos

de valentes garanhões

e em mostrar, mas ninguém vê,

as marcas de rez ferrada.

 

Ressentidos, não repartem

nem o mormaço em que abrigam

sua fofa solidão,

seus malogros e seus medos.

E escarnecem da canção

que persevera no campo,

vinda lá das bandas verdes

do varadouro que leva

ao poço onde espera o sal.

 

III.

 

Tempo de brasa, o boi.

Quando é vindo mais um dia,

o boi confere o tempo.

E se a manhã prolonga mais a noite,

ele brama a sua esperança,

orvalho na espessura.

 

O leito do rio fede.

O capim, áspero, come

a primavera da fome.

A trilha é longa,

vai levar tempo chegar.

Mas persevera. O campo vai ser verde.

 

Não vai sozinho. Outros chegarão.

Mas vai sabendo: são poucos

os que vão seguir seguros

do desamparo do chão,

e muitos os que dos berros

turvos, túrgidos, não vão

ir muito além.

Só minguados

chegarão, hão de chegar,

para o tempo dos relâmpagos na barra.

 

A lâmina acesa,

malferido se levanta.

O campo vai ser verde.

No campo escuro dos bois,

ele avança devagar.

E quem vai com ele, vai

levando, além da ciência,

amor, faro e paciência.

 

 

Buenos Aires,

   verão de 1974.

 

 

Você também pode se interessar por

— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

Além dos nomes acima muitas outras pessoas colaboraram com o projeto. Para uma lista mais completa de agradecimentos, confira a página Sobre o projeto.

O MPAC é um projeto de caráter científico, educativo e cultural, sem fins lucrativos. É vedada a reprodução parcial ou integral dos conteúdos da página para objetivos comerciais. Caso algum titular ou representante legal dos direitos autorais de obras aqui reproduzidas desejem, por qualquer razão e em qualquer momento, excluir algum poema da página, pedimos que entrem em contato com a nossa equipe. A demanda será solucionada o mais rapidamente possível.

— Financiamento e realização

© 2025 Todos os direitos reservados