O ANJO ACIDENTADO
O corpo estendido na rua
sobre a poça rubra,
fervilhando entre o asfalto
e o limiar da calçada,
foi atropelado por quem?
Que carro?
Que camburão?
Que tanque blindado?
Que regimento de cavalaria?
Que exército com mil soldados
o fez assim tão destroçado?
O corpo na mão do legista,
que legitima a morte,
não tem mais onde ser dissecado,
pois dedos já não há mais,
não há mais costelas,
não há mais perônios,
não há mais clavículas,
não há fêmures,
não há unhas,
não há testículos,
nem sabugos,
nem crânio,
nem coração…
O médico do Instituto Ilegal
descreve a causa mortis:
– Atropelamento…
Que trator?
Que trem de ferro?
Que brucutu?
Que caminhão?
Que avião
o fez assim em pedaços?
Os lacaios do regime
correm logo em direção
com baldes,
vassouras,
sabão
e água,
para depois de tudo limpo
dizer que crime já não há mais,
não há mais assassino,
não há mais vestígio,
não há mais marca,
não há hematoma,
não há dor,
não há suplício,
nem padecimento,
nem horror,
nem aflição
e, principalmente,
não há cadáver…
Haverá no máximo
uma fotografia na página do jornal
com um lençol branco estendido.
– Foi acidente…
– Foi acidente…
– Foi acidente…
Ninguém ousa contestar
o laudo do regime.
Dir-se-á que um anjo
foi acidentado na rua.
Rio de Janeiro, 12.9.72