O 31 de março que eu vi

Maciel de Aguiar

O 31 DE MARÇO QUE EU VI

 


A notícia inundou a sala.

Meu pai,

sentado à cabeceira,

para o exercício alimentar cotidiano,

frente à família reunida,

apertou o garfo nos dentes.

Era decretado silêncio tumular...

Todos os ouvidos buscavam as palavras

que vinham do rádio defronte.

Incrédulo,

meu pai levantou-se

e encostou o ouvido na voz.

Nós,

estáticos,

permanecemos na mesa posta

à espera da Nova Ordem.

Os mais longos minutos

de nossas vidas se passaram

sem que ninguém pudesse

entender o acontecido.

Me atrevi a engolir a saliva,

mas minha mãe reprimiu com veemência

do outro lado da cabeceira,

guardiã de nossas vontades.

Meu pai virou-se para a família,

olhou aos nossos olhos

e, num gesto de conspiração

e dor,

sentenciou:

—— De hoje em diante

   ninguém mais sairá de casa,

   queimem todos os livros,

   destruam todos os documentos,

   rasguem todas as cartas,

   apaguem todas as luzes,

   esqueçam todos os sonhos,

   enterrem todas as esperanças,

   que vamos enfrentar os carrascos...

Corremos todos ao quarto,

enrolei-me com medo do lobisomem,

cobri-me pensando no boi-tatá,

fiquei quieto com medo da mula-sem-cabeça,

suei frio sob sete cobertores,

rezei vinte pais-nossos,

implorei às almas benditas,

prometi não mais beber o vinho da missa,

confessei os meus pecados,

fiz figa com os quatro dedos,

tremi feito vara verde,

lembrei do meu vira-lata,

lamentei por meus passarinhos,

chorei por meu jabuti,

sozinhos do lado de fora,

expostos a tanta maldade

que vinha na voz do rádio

para nosso desespero...

Meus olhos ficaram acesos

pela noite de agonia,

mas não resisti ao sono

que me levou pelos braços

até a manhã seguinte.

Primeiro abri um olho,

desconfiando do mundo,

sol invadindo o quarto

para encorajar a vida...

Corri para a janela,

tudo estava intacto,

a cidadezinha caminhava

para o anonimato da província

que acredita na mentira

como a mais sublime verdade.

Só no pátio do colégio

fui entender o ocorrido:

—— É primeiro de abril!

Saí correndo feito um louco,

abracei meus inimigos,

beijei a mais feia das meninas,

jurei estudar matemática,

até não mais boicotar

as aulas de religião,

fiz tudo que me pediam

pois tudo estava intacto:

—— É primeiro de abril!...

Gritei,

gritei,

gritei,

muitos não entendiam

a minha felicidade.

Havia recuperado

o que perdera na noite

que passou sobre nossas vidas...

Até hoje, quando uns lacaios

vão às ruas para comemorar

a revolução de 31 de março,

logo grito com todas as forças

e a convicção que me alimenta:

—— É primeiro de abril!

—— É primeiro de abril!

—— É primeiro de abril!

 

                      São Mateus-ES, 15.4.68

 

 

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