NOTURNO
1. O zumbido do silêncio
insiste em nos atordoar
mas as nuvens que ainda restam
desistiram de tentar
parecer alguma coisa
e ao nos ver tão despertos
as derradeiras estrelas
se arregalam espantadas
com nossa imobilidade
e nós inertes e mudos
olhos fixos no escuro
constatamos insones
nossa intensa solidão.
2. No indevassável do vento
alguma coisa se esboça
tênue lagarta de ar
roça no ventre da noite
desce macia e mansa
como um gato incerto
sobre um possível muro
toda pêlos e patas
pousa como um inseto
em nossos peitos nus
gorda e invisível
como um gesto escuro.
3. Quando meus lábios sem língua
se aproximarem sem pressa
de teu corpo compenetrado
será um beijo comprido
seco firme controlado
que o tempo é lento e sem fim
e tua carne gelada.
E quando nossos corpos se encontrarem
na extensão total de nossa pele
e nossos braços se tornarem tensos
e nossa insônia se intensificar
será um contato puramente elétrico
um espasmo apenas, ato instantâneo
contundente e final, mecânico e exato
como o cravar de um punhal.
4. E quando por fim nossos olhos exaustos
pesados de noite pensarem enxergar
ao longe uma espécie de vago clarão
não vamos saudar a manhã que nasce
não vamos cantar hinos claros ao dia
não vamos dançar ritmos febris
em homenagem ao sol.
Vamos fechar os olhos importunos,
vamos pensar em coisas limpas e escuras
como a noite.
E se o dia insistir em raiar
só nos resta uma coisa a fazer
que é irmos embora, em direções opostas.
Comentário do pesquisador
No livro consultado, o título, todo ele, está escrito em caixa alta. Na primeira seção do poema, há indicação de “O zumbido do silêncio”, cabendo lembrar que a censura, uma forma de silenciamento, marcou bastante os Anos de Chumbo. Além disso, na última seção do texto, o eu lírico diz “não vamos cantar hinos claros ao dia”, sendo que o hino, música não raro militar e relacionada a elementos como o patriotismo, é recusado.