Neste lençol as múltiplas imagens
da última brisa estrangulada ou
dos eletrizados berros que se alçaram
em bolas de silêncio sobre os muros
das prisões e sobre
o tráfego, o ruído dos bares, as conversas
com que nos enganamos e enganamos
o que deveria ser a própria vida.
Sobre este lençol o quarto, o nosso quarto
é o túmulo e também o berço
de toda consciência morta
porque estava viva
porque era flor
porque era amor
porque era
abelha operária a fabricar o mel
sobre o corpo alongado da cidade.
O tempo, querida, o tempo é o nosso corpo
neste lençol: não há ferida no mundo
que não esteja aqui, canteiro rubro
a nos pedir inteiros como
a antiguidade das chuvas
sobre o homem que lavra a terra
ou faz a Casa.
Neste lençol a química, o diafragma, a ladrilhada angústia
dos hospitais
como o avesso da vida que não poude.
Neste lençol os sentimentos negativos, o medo
de colher os sóis que se afundaram
na existência empoçada entre essas leis
a regular o homem
que rodopia
em torno do seu próprio rabo.
Neste lençol a dureza do mundo se insinua, diária e triste
a espetar suas lascas erosivas
no corpo sem dinheiro dessas tardes
aprisionadas no que não compramos
para servir de chão para o que amamos.
Neste lençol a longa espera nos porões da noite
quando os relógios roem ausências e demoras
nesta cidade em que cada esquina abriga
figurações de desespero, violência e medo.
Neste lençol em cada coito e em cada orgasmo
a fome feroz de uma cidade nova.