NÃO CHORES
Descansa teu rosto (PPSP, 30 de setembro
entre minhas mãos de 1976)
e bebe este sal.
Eu, que amei tanto o silêncio
e ainda o quer tanto
vou derramar o fogo da palavra
como quem distribui estrelas
sob a porta.
Mataram Santucho.
É certo.
A foto está nos jornais.
É certo também que morri um pouco,
porque sigo vivendo
e a morte pesa demasiado
a quem fica.
Mataram Santucho.
Cumpriu-se a profecia dos "oráculos"?
Recorda Moncada.
Lá também havia "oráculos",
Sentenciaram:
"Mortos
e aprisionados.
Moncada resultou apenas uma pedra
na vidraça da Noite recomposta".
E se recolheram
à sua sabedoria
e esperaram
amadurecer um fruto de sangue
que foi cultivado enquanto dormiam.
Despertou-os o canto
de adolescentes armados
a dizer-lhes:
"já não sois necessários..."
Mataram Santucho.
Muitos morreram.
Muitos morrerão.
Não chores.
Deixa-me repousar
a cabeça no teu colo,
ouvir o trêmulo silêncio
dos teus seios,
deixa-me recobrar por um alento
a infância devastada,
a pureza,
a paz,
antiga como antigas manhãs,
deixa que teus olhos
carregados de infância
mirem por meus olhos
a cidade dos meninos livres.
Mataram Santucho.
Renascerá.
Renascerá em sol
e bandeiras.
Descansa teu rosto
entre minhas mãos
infinitamente
e deixa que meus dedos percorram
o território mais fundo
de tua alma
e recolham uma flor
de lágrima
e vento
e fogo
e Esperança.
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. A segunda edição de “Poemas do povo da noite” (São Paulo, Fundação Perseu Abramo e Publisher Brasil, 2009) inclui o livro “Água de rebelião”, publicado originalmente em 1983. No texto introdutório da edição de 2009, intitulado “Explicação necessária”, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). Após a reprodução de ilustrações de Cerezo Barredo Dial, que constam na primeira edição do livro, a segunda edição apresenta uma dedicatória: “Estes poemas permanecerão ardendo para guardar a memória de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado, assassinados pelos carrascos da ditadura enquanto dormiam”. Logo a seguir, há uma explicação: “Estes poemas tratam de homens reais, de torturas reais, de assassinatos reais ainda impunes” (TIERRA, 2009, p. 169).