MINHA CABEÇA EM TRÍPTICO
1
Na minha cabeça há fuzis engatilhados, modorra de elegias, gritos em
masmorras, lerda música de dólares contados. Há vinte milhões de
meninos abandonados; há trinta milhões de miseráveis no campo e na
cidade dentro de mim estendendo um longo berro. Há sacerdotes acen-
dendo velas nos currais de lobos e cordeiros; há filósofos buscando
luzes sob os esqueletos dos hinos mortos na semana. Há remelas nos
olhos do futuro, quase vômitos nas gamelas do presente sobre os hori-
zontes cheirando a doença e sofrimento em torno das alegrias da Barra
e de Ipanema, de Guarujá e de Ilha Bela. Há graneleiros no Pará, petro-
leiros em Garoupa, e ruas, muitas ruas mastigando as solidões desta
pátria tão garrida e em que se plantando tudo dá. Trágica e dramática,
a grandeza disso tudo sobe e desce em minha cabeça, e o que era
alto se transforma em baixo e o que era baixo se transforma em alto
e tudo se encontra e tudo se contradiz e tudo se separa e tudo se
mistura numa temporalidade incapturavelmente movediça. Sou um cas-
telo que gira, forma doida e sem saída, porque de seus muros não
parte qualquer ponte levadiça. Na minha cabeça brasileira o tempo está
de porre. Minha vida nasce a cada instante e a cada instante minha
vida morre. Há beleza, contudo, em minha decepada cabeça de poeta,
aquela em que a tarde em suas fúrias me balança, rosa sem haste, na
orgulhosa lança da mais alta meta.
2
Onde a porta? Onde a vida morta que tudo corta e nada exorta? Onde
o porto a que levei meu morto? Onde, em minha cabeça agora univer-
sal, pastam os búfalos da noite em que o meu poema vaga, além do bem
e além do mal? Onde plantarei as vozes que chegam da Ásia e da
África, escravas libertas de um reinado que já era, alforrias confusas
que hoje afago como ao novo tempo entre as minhas mãos de flor e fera?
Onde a explicação de tanta dor nas primaveras? Ou dos pensamentos
que me obrigam agora a ser meu próprio enterro neste espaço sem
moldura em que sou carne que arde, fogueira escura em ilhas tontas
de desterro, indomada fome de amar a luz do sol (ausente) sobre a
sombra do homem e seu presente.
3
Na minha cabeça brasileira eu corro. E o buraco azul do Cosmo em
meu correr se instala. Tempo e destempo, eu vou e volto; e o buraco
azul em negro estala. Um trem sobe neste momento lentamente o mor-
ro; o mundo pára entre parêntesis e a bola da infância desce velozmente
a ladeira que fica atrás de todo esquecimento.
Na sala, o meio-dia é uma bala
ou uma fogueira que dorme
imóvel, como a cadeira e a palavra que não foi dita.
A América do Sul é uma caveira enorme
no meu assoalho tão velho como o Egito
ou a sombra de Sólon entre os portais da Grécia.
Arrastada pelo chão imundo de tantos séculos
por milhares de mãos como formigas, eu a chuto
com o meu último pé para a fogueira
desatada
além da janela e da tarde, dor queimada
neste final de tempo sobre a Terra inteira.