A casa: a costa é linha curva,
concha acústica
aberta ao miliventos
À sua frente todo um mar canta
em coro-coral cortante
(tantas as vozes!)
desde o nascente às dobras do poente.
Casa e paisagem de agressivas telas:
becos, botecos, bêbados, batuques,
morros de tantos vários habitantes,
de mortes tantas.
Os quadros e as paredes: pescadores
sem barcos e sem peixes,
lavadeiras sem torneiras e tanques.
É uma visão amarga:
e a beleza é tão grande
mas ninguém a enxerga
no caminar das dunas tortu(r)osas,
na fome das crianças — desafio
para quem olha a costa e não descobre
o sentimento do mundo de Drummond, ali presente.
É um projeto de casa que inexiste
onde as areias e onde o verde-azul
de um mar sem donos
dominam a curvilínea forma que antevejo:
Praia do Pinto, Mãe Luisa, Ponte Negra
— paisagem que persigo como à Estrela da Manhã,
em sua vida inteira, buscou Manuel Bandeira.
Minha busca, Manuel,
não é mais simples:
é uma casa: com seu chão e sua paz,
estrela-guia — barco, cesto, árvore, pedra:
o peixe, o fruto, a mesa, a flor, a cor,
o disco, a flauta azul de minha avó,
a voz de cada livro nas estantes,
a fala dos amigos e o seu pranto
— população do sonho dessa praia humanizada,
arquitetura interior, concreta,
dos meus anos 50.
Comentário do pesquisador
O poema, publicado em 1978, menciona o "caminhar das dunas tortu(r)osas, / na fome das crianças", aproximando dois problemas recorrentes no Brasil da Ditadura Militar: a fome e a tortura. Além desses, há menções a problemas como a moradia, sem falar que a classificação do poema, já no título, enquanto "marinha" aproxima o texto de uma tradição lírica muito particular, dando a essa mesma tradição um, talvez incomum, caráter político.