Mapa Carcerário

Waly Salomão

MAPA CARCERÁRIO

 

Rol de visitas, blitzes, juiz do xadrez, as tatuagens (arabescos, leão

com estrela na ponta da cauda, mulher, rosa dos ventos, amo-te).

  O passador de fumo de 18 anos preso de novo três dias após sair

da detença. Os ideais do xadrez 506: lazanha dia de sábado à noite:

os farisas. Os farisas. Os bunda mole. Os casca de jaca escamoso.

  EU, SAILORMOON, de sangue indomárabe, Sirio desponta de dia

= DILÚVIO, todos os inimigos feridos no queixo e quebrados os den-

tes e flechado fígado coração rins e esmigalhados pau na molei-

ra por uma barra de ferro perversa nas minhas mãos e por esta

minha modernidade forçosamente desfibrada e com medo dos

grandes bandidos da ordem neste cemitério onde estou preso com

a classe média carcerária.

  O desfile da travestriz no pavilhão central: a ordem de saída de

uma almofadinha de seda. A bicha macumbeira. O dia inteiro de

castigo na sala de triagem da bonequinha de minissaia: um espetá-

culo para as multidões. Cavou um poço e o fez fundo e caiu na cova

que fez. A sua obra cairá sobre a sua cabeça e a sua violência desce-

rá sobre a sua mioleira. Exaltação do inimigo sobre mim. Título e

assunto do livro. Coleção Documentos Humanos da Editorial Pra-

frentex que já começa velhex.

  Ventre amargo do profeta. O sinal o nome e o número na tes-

ta. Os bandidos lendo nos jornais os grandes sinais de como rea-

lizariam melhor os crimes de todo dia. Suplantação da bobeira. O

caminho do meio: quebrar a cara pra deixar de ser otário. Quem

poderá batalhar contra a besta? Ou andará alguém sobre as brasas,

sem que se queimem seus pés?

 Agudo como a espada de dois fios. Mentira altivez crime guerra

vício falsidade. Os caminhos do juízo. Bom siso. Livrar-se da per-

versidade. O acréscimo dos dias ao justo. Colunas de fogo ao ímpio.

As tábuas da lei. Do meu coração. Comer do fruto do meu caminho.

Tonalidade do som da Besta: o excesso o escândalo o erro. Ciência

do santo: prudência. Fogo descendo do céu à terra. Guardar o man-

damento do pai e da mãe. Gibizão: Este mês conta minha 8ª en-

trada na prisão. Remédio para o umbigo e medula para os ossos. Ti-

rei carta de malandro profissão de vagabundo. Deus compassando

a face do abismo. Correr e não tropeçar. Perder os pés. Ímpio. Não

conhecem nem aquilo em que tropeçam. Vida mansa honra gra-

ça glória ao sábio e confusão ao louco. Prudência da boa doutrina.

Correção. O vinho das violências. Conhecimento = temor de Deus.

Comer do fruto do meu caminho. Comer do fruto do meu próprio

caminho. As tábuas da lei do meu próprio coração. A excelência da

sabedoria. A excelência e justiça dos preceitos da sabedoria. Sabe-

doria como escudo dos sinceros. Equidade verdade piedade retidão

correção. A ciência dos conselhos soberbia arrogância mau cami-

nho. O pecado original não podia ser apagado senão com sangue.

  Todas as raças nobres deixaram vestígios de barbárie à sua pas-

sagem. Louca ousadia. Indiferença e desprezo. Desprezo da como-

didade do bem-estar da vida. Alegria terrível de destruição versus

instinto de rancor dos fracos. Os detentos que possuíam alguma

coisa no exterior, os pequenos funcionários, os barriga crescida, os

que tiveram algum estudo = neurastênicos biliosos. Os rapadores

de taco. Os contadores de caso de linguagem inventiva. Duas coisas

que não acabam mais: trouxa e pau torto. Os pedra noventa fazen-

do sempre uma presença. Dois carneiros de chifre não comem na

mesma cumbuca. Quando sair da prisão jogar no número ganhar

o prêmio tomar uns paus e acabar voltando de novo pro xadrez.

Mesma ordem exterior. Triagem por estar esperando comida antes

do horário, triagem por desrespeito ao carcereiro. O lançamento

simples dos fatos sem retomar o modelo do grande romance não

corresponde ao mesmo orgulho do escrivão que leva um flagra

deixando tudo pronto pra assinatura da nota de culpa em menos

de 40 min.?

  Manter a tramela da tranca fechada. Uns falam demais contan-

do bazófias do meio que vieram. Tive mil mulheres na vida.

 Assinatura da nota de culpa. Triagem. Quando você ti-

ver tirando 5, 6 anos de grade, acostuma. Aqui existe companheirismo.

Moeda corrente: maço de cigarro. Agência de advogados não é aqui,

amarre o saco na grade. Os advogados do estado nunca aparecem.

Seção de ações e recursos criminais. A grande literatura espírita

nacional. Mapas zodiacais. planos invisíveis de vida. o grande con-

tinente da Lemuria. os povos hiperbóreos. os ádvenas. o terceiro

milênio. a mística da salvação. a corrente caínica. a raça caínica.

  Detentos em regime de cela forte. Lista de castigo. Detentos em

regime de cela forte por determinação do Sr. Diretor por ter sido

encontrado portando dinheiro por ter sido encontrado arran-

cando as plantas do pátio por haver furtado um isqueiro de outro

detento por receptação de isqueiro roubado por haver agredi-

do outro detento com faca improvisada por haver agredido ou-

tro detento com objeto contundente por haver estuprado outro

detento por haver estuprado outro detento por haver estupra-

do outro detento por determinação do Sr. Diretor de Disciplina

por ter sido encontrado trepado na janela por ter sido encontra-

do portando gilete de barbear por ter sido encontrado na prática

de jogo de azar por ter sido encontrado com uma porção de erva

denominada “maconha” por ter sido encontrado com uma por-

ção de erva denominada “maconha”.

  De outra vez que você entrar sua barba vai crescer aqui. O mon-

te do conde cristo. Aqui todo mundo é totalmente devagar no

fundão você tinha que brigar o dia inteiro. Lá a barra é totalmente

carregada, aqui é cadeião chocolate.

  Lista de castigos por ter descido para o pátio no dia de visi-

ta sem estar devidamente requisitado por não se ter colocado

devidamente em forma na fila por ter sido encontrado portan-

do uma rifa por ter sido encontrado com uma lista de apostas

por haver atacado outro detento com um estilete observação:

o detento... que se encontrava na cela forte por haver desacatado

um funcionário do expediente se acha internado na enfermaria do

pavilhão nº…

 Esta lista de castigos não possui nenhuma sanção absurda sendo

semelhante a qualquer regulamento interno de instituições afins

— o que existe de absolutamente louco é esta situação louca e esta

vontade louca de pensar na sua descrição como se contivesse algu-

ma coisa anormal incomum inexistente. A única coisa que me inte-

ressaria aqui é impossível: aprender a passar o tempo. Um homem

forte que saiu da cela forte fedendo a bosta. As horas aqui não pas-

sam. Me encontro sem distração e nem minh’alma canta ao Senhor

e nem sinto minha situação prenhe de novas expansões de vida.

 Desenho de um revólver na parede. Desenho e descrição do

corpo humano na parede. Nomes de heróis na parede: Nenen de

Vila Carrão.

 Aqui existe companheirismo. Aqui igualou todo mundo ao ní-

vel do merdame. Aqui todo valente se caga todo covarde faz força

toda vaidade se apaga. Estreita circularidade de minha vida sem-

pre tomando aos mesmos problemas às mesmas lendas dessuetas:

do alto do avião estou lendo um fino desenho de areia por entre

dois indecifráveis mares... e como fazer crer que isto não é uma

antiga imagem literária?

  Vê só, vê só: um caranguejo fez xixi no urinó.

 

      São Paulo, Casa de Detenção, 18 dias janeiro-fevereiro 1970.

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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