LIÇÃO DO MUNDO
Aquele ancião traz as pálpebras
caídas pelos anos
sobre a paisagem do tempo.
O que o faz pensar
que vivemos metade mortos
vivos a outra metade?
Aquele ancião olha os estudantes
que passam em passeata
pelas ruas possuídas,
retrato de um tormento
na memória que vai longe.
O passado e o presente
somam as mesmas aflições,
velhos de hoje,
meninos de ontem;
meninos de hoje,
velhos do amanhã…
Aquele ancião sentado
vê na praça campo-de-guerra
a voluntariedade de uns
contra a impossibilidade de muitos,
e traz ainda marcas
em sua pele flácida,
de sua alma pálida,
seu peito em dor,
nostalgia e lembranças
invadindo o sonho.
Aquele ancião à espera,
com seu corpo cambaleante
ao mesmo sol primaveril,
busca nas recordações
a felicidade perdida,
falando aos céus do tormento
que cobrem com um manto
os jardins que ainda florescem:
— Da vida faz-se a esperança,
da esperança refaz-se a Liberdade.
Com um espelho na alma
o ancião se olha,
vê-se na pele dos infantes
que nem ao menos viveram
as primeiras aventuras;
vê-se nas bocas amordaçadas
que se rebelam diante
da voz que vem das Ordens,
espalhando pânico sobre as cabeças;
vê-se nos atos que denunciam
o desaparecimento das pessoas
cujos corpos mutilados
pela sordidez do martírio
não têm direito à sepultura;
vê-se na força das mãos
que estilhaçam as vidraças
em gestos de rebeldia;
aquele ancião vê-se
abraçado à mesma causa.
Recomeçar de novo,
entrincheirando-se em cada beco,
nas ruas,
nas praças,
nos esconsos,
gritando frente os algozes,
cuspindo no rosto do carrasco
como um último desejo,
recolocando no peito
o sonho de Liberdade,
cantando canções proscritas
diante dos demônios.
Aquele ancião sentado
diante das bombas de gás,
pedras,
balas,
paus,
gritos,
palavras
diante da opressão,
vê-se em cada um
com a velha esperança,
vê-se em cada qual o destino,
vê-se em busca da felicidade,
sonha
e chora,
lágrimas,
lágrimas,
lágrimas
de uma dor incontida.
Aquele ancião estático
no banco da praça à espera
vê-se no retrato do tempo
com as rugas na face,
e como num velho álbum
caminha em descompasso,
enquanto os meninos de hoje
assistirão ao amanhã
dos olhos octogenários
escorrerem lágrimas de sangue
da mesma lição do mundo:
— Da vida faz-se a morte,
da morte refaz-se a vida…
Aquele ancião olha-se
no espelho da lâmina da alma,
os mesmos passos de ontem
nos passos dos meninos de hoje,
a mesma rebeldia dos anos
na pele dos infantes guerreiros,
o mesmo sortilégio passado
nas faces dos que se olham,
retratos dos que se vêem
na lembrança dos que virão…
Lição repetida no tempo
por todos os cantos do mundo.
Rio de Janeiro, 17.02.72