Lamentações n.º 4
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(A MANHÃ que não verei).
Os galos deixaram de cantar, o leiteiro esqueceu o nú-
mero das casas e o saxofonista não mais toca seu instrumento
apesar de ainda conservá-lo colado à bôca; as rádios, aves
hertzianas, cessaram repentinamente de gorjear os hinos da
propaganda; as ruas estão desertas e há carros se incendiando
nas esquinas; um expresso, vindo de Luxon, está em pleno
processo de engavetamento (os fotógrafos do Nada febrilmente
tomam seus instantâneos, para a sensacional reportagem do
Nunca); as tenistas restam estateladas na quadra, uma em di-
reção à outra, as mãos estendidas para o longo apêrto final
(o público, imóvel, parece ainda aplaudir); páginas do Apo-
calipse voam pela quadra como fôlhas sêcas: uma viração leve
brinca com o saiote de renda da tenista derrotada; comboios
navegam misteriosamente no fundo dos mares; o comício-re-
lâmpago ficou pelo meio, o candidato das oposições agitando
no ar o punho revoltado; enquanto um porta-aviões viaja em
silêncio rumo à estratosfera; falhou o golpe de estado prepa-
rado pelos partidários do Crownismo (os pára-quedas desciam
como fardos); os cinemas estão vazios, rolos de filmes espa-
lhados pelo chão, as poltronas arrebentadas; uma grande man-
cha de sangue enodoa a tela de um dêles, em pleno centro
da cidade (há alguém sentado numa poltrona ainda intacta:
nos seus olhos, os últimos clarões do Cogumelo).
Terra de miséria e de trevas
onde habita a sombra da morte
e não há nenhuma ordem
senão um sempiterno horror