JANEIRO
sim, é janeiro novamente. mais um ano de espera, mais
um ano de convívio com as feras, com o ódio. é o ja-
neiro de sempre a fazer brasas no corpo de um homem já
quase desterrado, plantado no chão como uma árvore de
acrílico, sem voz. é mais um ano que me vejo acrescen-
tando tempos sem histórias, encurralado como lebre, como
observado por um tigre baleado, como uma tartaruga
aleijada no asfalto quente. (nos vastos pátios da capital
homens em semicírculos absurdos abusam do calor do
sol, cientistas encapuzados cortam com bisturi magnético
a língua do condenado à prisão perpétua). me sinto como
cobra entre cobras, portador de venenos raros, animal
encavacado na floresta devastada onde feridas florescem
como flores em jardins adubados. sou companheiro de
pequenos insetos que tramam conspirações impraticáveis,
e me preocupa os rios de lágrimas que continuam a
crescer, como o bico molhado do pássaro domesticado
que fez meu ombro de morada; me preocupa, o mar de
sangue coagulado em cada esquina. sim, é mais um ano
de nuvens clandestinas a fazer greves aos astros, mais
um ano de despachos e feitiçarias, à espera de tempes-
tades. sim, é janeiro na cidade, e esse janeiro de agora
ferve na alma como ferve o latido de um peixe nas ondas
do mar, como ferve o bailado dos mendigos que sapa-
teiam nos lagos infetados de esqueletos, como pardais
varridos, como as hienas que choram de desgosto nas
avenidas. sim, é janeiro, e confesso que já me sinto devo-
rado, iniciando-me num ano mais velho que a tristeza de
um velho, sem perspectivas, assim cada vez mais alheio
aos mortos e aos vivos, feito louco nessa praça deso-
cupada, esperando a noite chegar e trazer suas estrelas
predestinadas, enquanto o sol arde como vinagre na carne
viva do peito onde a pele foi impiedosamente arrancada
pelo emissário do inimigo. sim, é janeiro na cidade, o
mesmo janeiro do ano passado.