INVENTÁRIO
1.
na superfície da água o frio do aço:
- podes conter a chispa e a partícula,
a ponta da agulha no auge da fúria.
na lâmina da planície um rio sem barro:
- fazes crescer o quisto e o ridículo,
o lenço e o pranto do teu medo público.
na superfície da lâmina a lama e o musgo:
- dizes quebrar a crista e a onda,
a mágoa e o lamento de tua redoma.
dizes:
o frio do aço.
fazes:
um rio sem barro.
podes:
a lama e o musgo.
neste pleno compasso
desta retórica plana
o que podes
o que dizes
o que fazes
é o doce simulacro
de tua culpa plena:
a água não lava a nódoa,
a água não é pedra pérola,
ouro prata, ametista.
a água escorre cômoda,
a água nem leva a mácula
de tua joia conformista.
2.
pelos canais da rêde o verde cloro:
- tentas fingir a fuga e o refúgio,
ο ópiο ο ο apôio do teu ódio miudo.
pelos ramais da sêde o fino filtro:
- pensas pagar a quota e a alíquota,
o saldo e o preço de tua negra dívida.
para os caudais da fonte a frágil tela:
- sentes passar o cisco e o líquido,
a bile e o mimo do teu protesto tímido.
sentes:
o verde cloro.
pensas:
o fino filtro.
tentas:
a frágil tela.
neste vago suspiro
desta poética rara
o que pensas
o que sentes
o que tentas
é o parco delírio
de tua fúria parca.
a água que te consola
não basta para o débito
nem o crédito de tua hora cúmplice.
a água que te conforma
não chega para o cálice
nem vale para o vale
de tua mágoa súplice.
3.
na súplica do teu ludíbrio,
esta reprêsa represa
a água de um seco rio.
Rio seco ou vão suicídio
o que mais te ocorre é isso:
sem conquista nem terreno
sem boca nem mais apêlo
sem palco de tanta cena,
a água que tanto secas
é a água que mais represas
no rio de tua consciência.