Inquisitorial
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I
CÚMPLICES DA comoção moderna,
galhofamos do desencontro
ante o III Reich.
Galhofamos no teatro e no cinema
entre discurso e realidade.
(Mas a perda do sincrônico
se dá por nossa memória
ou pelo dedo de Chaplin.
Ao tempo real, eram ambos coerentes:
discurso e realidade).
II
Quando um soldado capenga
surgir em cena,
não compreenda, e, se compreender,
não ria — porque não estamos
ante um soldado nem ante o III Reich.
Quando um tanque se precipitar
da ponte,
não cante, e, se cantar,
não dance, — porque não estamos
ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.
E quando um gueto se sublevar
e fôr morto heròicamente.
não comente, e, se comentar,
não glorifique — porque não houve heróis,
só houve homens no III Reich.
E, ademais, não se diga
indigno o III Reich.
Porque não houve indignidades,
só houve o tempo.
O tempo não tem adjetivos: é ou foi, e faz-se.
III
Agora, amadureço a questão.
Nós prontamente solidários com a memória
(compromisso sem perigos)
e o desespêro irreparável dos mortos,
se, àquele tempo, presentes e vivos,
como veríamos o III Reich?
IV
(Para responder, não te transfiras
a cômodo, com agora.
Busca adquirir a cidadania alemã
e depois, estável, responde:
ao curso de fuzis e verdades da época
— considerando o risco de tua estabilidade —
operário ou proprietário da Mercedes Benz,
o que farias no III Reich?)
V
Em nós o tempo é o mais humano,
e hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
fração de um tempo maior
que a vagar se compõe, tão árduo.
Por isso pergunto:
em todos os tribunais passados,
que lado ocuparíamos
pois que somos seus acidentes
históricos e geográficos,
as estações, a carência e os meses?
Se ainda fôsse abril,
o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?
VI
Agora que estimamos
a incerteza
ante o III Reich;
agora que estimamos
menos perigosa
a participação da memória
e muito menos eficaz;
pergunto: tu, ante o presente,
como te defines ao que será passado?
Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.
Carregarás fardos para evitar
(repara que o rio corre e a noite vem como onda)
ou deixarás que apenas sejamos o tempo
e irreparável memória?
VII
Como existir e ser ante o III Reich
e qualquer um outro tempo de inquietação?
Diante escolha dada sem senões:
vida ou absolutamente nada,
o nada mais roído,
o nada mais raspado,
sem pontes ou rios, sem rios, sem pontes
às fugas e navegações?
Ao dizermos sim, estamos com êles.
Não, e nos perderiam de tudo, mesmo de nossa intimidade
e na praça,
sorririam de nossa solidão, nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,
conseqüência dêste caminho de contradição.
(Quando semelhante escolha
nos vierem pedir,
que coisa diremos
se só temos a vida,
a necessidade de preservá-la
e a compulsão de defini-la?
O que agir, se o que agimos
nos define a vida
e a consciência
desta mesma vida
ante seus momentos
e ela mesma ainda?
Ah como louvamos o tempo
que nos põe distantes,
só importando em memória
a nossa escolha e saída.
VIII
(Como nenhum roteiro são
as navegações do barco.
não há previsões que possam conceber o que seja
anterior ao seu ato.
Que a determinação da cidade
e do caminho ideal de abordagem
não evitam a pedra,
calmaria e tempestade.
Portanto, ainda mais se complica a questão
do que ser ante o III Reich.
IX
Nada a perguntar
se esquemática, fatal e sòmente
judeu fôsse judeu
e operário, operário,
e não como são:
êles e, inclusive, o III Reich.
(Ao existir nos pomos, às vêzes,
cúmplices da contradição.
De outra forma, nada seria dramático,
a simples previsão do roteiro salvaria o barco.
X
Pois, sendo judeu ou operário
o que fazer ante o III Reich?
Se pretensa vinculação mais ampla, de homem,
te impede de responder
com vinculação real de raça ou classe,
onde não se é bom ou mau homem,
mas mau negociante ou bom operário,
lembra-te do acôrdo de ato e consciência que possui o III Reich.
Então, como te farias em homem
ante o III Reich?
(Isto não é simples como aplaudir ou chorar,
comprometido com Chaplin.)
XI
Tenho mêdo da imaginação
e de tôdas as travessias,
onde me possa superar a correnteza do rio.
Sinto mêdo de mim sôlto às divagações,
onde não determino.
(Mas que faria se já não fôsse outono
e já não estivesse na outra margem do rio?)
Dou graças aos que passaram
e submergiram. Bendigo os que se comprometeram
com o êrro, para que eu não tivesse
de vacilar quanto ao lugar de vau
para atravessar êste rio
da existência, tão largo, tão humano extensamente largo
e arrancar o fruto do outro lado.
XII
Não quis dizer que a tudo justifica o tempo:
fôra, fazê-lo, assaz temerário.
Nem teitei um poema para desesperar:
diverge o intento. Quero dizer que o tempo não reflui
e inexiste chance de se provar a resposta
do que seríamos ante o III Reich, mãos de SS ou meras mãos inocentes,
participação mais grave que a dos que fizeram por bom senso
ou interêsse indefensável.
Escrevi para então,
aos que dizem não posso, tenho limitações,
posso ser pôsto de lado, à margem de direitos e comodidades,
ou aos que têm dúvida de que a mudança é ótima.
Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo
e outra qualquer linguagem: aos que, entretanto, calam.
Acuso êste bom senso de salvar-se
roubando balsas ao barco
que se tomou pra viagem.
Mas tenho certeza de que, se apenas
êsses existissem, ainda amargaríamos o III Reich,
como fruto constante
na bôca:
fruto que não se come nem se joga fora.
Escrevo e sei que a todo tempo houve outros,
como êstes aprendo e me comovo,
e mesmo que soçobre o barco num relativo naufrágio,
me mantenho atento às perseguições do porto.
(1965)