Inquisitorial

José Carlos Capinan

Inquisitorial

 

_______________________________________________________________________________

 

 

 

 

 

 

 

I

 

CÚMPLICES DA comoção moderna,

galhofamos do desencontro

ante o III Reich.

 

Galhofamos no teatro e no cinema

entre discurso e realidade.

 

(Mas a perda do sincrônico

se dá por nossa memória

ou pelo                dedo de Chaplin.

 

Ao tempo real, eram ambos coerentes:

discurso e realidade).

 

II

 

Quando um soldado capenga

surgir em cena,

não compreenda, e, se compreender,

não ria — porque não estamos

ante um soldado nem ante o III Reich.

 

Quando um tanque se precipitar

da ponte,

não cante, e, se cantar,

não dance, — porque não estamos

ante a firmeza do tanque e a verdadeira ponte.

E quando um gueto se sublevar

e fôr morto heròicamente.

não comente, e, se comentar,

não glorifique — porque não houve heróis,

só houve homens no III Reich.

 

E, ademais, não se diga

indigno o III Reich.

Porque não houve indignidades,

só houve o tempo.

O tempo não tem adjetivos: é ou foi, e faz-se.

 

III

 

Agora, amadureço a questão.

 

Nós prontamente solidários com a memória

(compromisso sem perigos)

e o desespêro irreparável dos mortos,

se, àquele tempo, presentes e vivos,

 

como veríamos o III Reich?

 

IV

 

(Para responder, não te transfiras

a cômodo, com agora.

Busca adquirir a cidadania alemã

e depois, estável, responde:

 

ao curso de fuzis e verdades da época

— considerando o risco de tua estabilidade —

operário ou proprietário da Mercedes Benz,

o que farias no III Reich?)

 

V

 

Em nós o tempo é o mais humano,

e hoje de homem não temos senão o tempo ganho,

fração de um tempo maior

que a vagar se compõe, tão árduo.

 

Por isso pergunto:

em todos os tribunais passados,

que lado ocuparíamos

 

pois que somos seus acidentes

históricos e geográficos,

as estações, a carência e os meses?

 

Se ainda fôsse abril,

o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?

 

VI

 

Agora que estimamos

a incerteza

ante o III Reich;

 

agora que estimamos

menos perigosa

a participação da memória

 

e muito menos eficaz;

pergunto: tu, ante o presente,

como te defines ao que será passado?

 

Há urgência de resposta, antes que a noite chegue.

Carregarás fardos para evitar

(repara que o rio corre e a noite vem como onda)

ou deixarás que apenas sejamos o tempo

e irreparável memória?

 

VII

 

Como existir e ser ante o III Reich

e qualquer um outro tempo de inquietação?

 

Diante escolha dada sem senões:

vida ou absolutamente nada,

o nada mais roído,

o nada mais raspado,

sem pontes ou rios, sem rios, sem pontes

às fugas e navegações?

 

Ao dizermos sim, estamos com êles.

Não, e nos perderiam de tudo, mesmo de nossa intimidade

e na praça,

sorririam de nossa solidão, nossa extrema solidão, nossa solidão na morte,

conseqüência dêste caminho de contradição.

 

(Quando semelhante escolha

nos vierem pedir,

que coisa diremos

se só temos a vida,

a necessidade de preservá-la

e a compulsão de defini-la?

 

O que agir, se o que agimos

nos define a vida

e a consciência

desta mesma vida

 

ante seus momentos

e ela mesma ainda?

 

Ah como louvamos o tempo

que nos põe distantes,

só importando em memória

a nossa escolha e saída.

 

VIII

 

(Como nenhum roteiro são

as navegações do barco.

 

não há previsões que possam conceber o que seja

anterior ao seu ato.

 

Que a determinação da cidade

e do caminho ideal de abordagem

 

não evitam a pedra,

calmaria e tempestade.

 

Portanto, ainda mais se complica a questão

do que ser ante o III Reich.

 

IX

 

Nada a perguntar

se esquemática, fatal e sòmente

 

judeu fôsse judeu

e operário, operário,

 

e não como são:

êles e, inclusive, o III Reich.

 

(Ao existir nos pomos, às vêzes,

cúmplices da contradição.

 

De outra forma, nada seria dramático,

a simples previsão do roteiro salvaria o barco.

 

X

 

Pois, sendo judeu ou operário

o que fazer ante o III Reich?

 

Se pretensa vinculação mais ampla, de homem,

te impede de responder

 

com vinculação real de raça ou classe,

onde não se é bom ou mau homem,

 

mas mau negociante ou bom operário,

lembra-te do acôrdo de ato e consciência que possui o III Reich.

 

Então, como te farias em homem

ante o III Reich?

 

(Isto não é simples como aplaudir ou chorar,

comprometido com Chaplin.)

 

XI

 

Tenho mêdo da imaginação

e de tôdas as travessias,

onde me possa superar a correnteza do rio.

Sinto mêdo de mim sôlto às divagações,

onde não determino.

(Mas que faria se já não fôsse outono

e já não estivesse na outra margem do rio?)

 

Dou graças aos que passaram

e submergiram. Bendigo os que se comprometeram

com o êrro, para que eu não tivesse

de vacilar quanto ao lugar de vau

para atravessar êste rio

da existência, tão largo, tão humano extensamente largo

 

e arrancar o fruto do outro lado.

 

 

 

XII

 

Não quis dizer que a tudo justifica o tempo:

fôra, fazê-lo, assaz temerário.

Nem teitei um poema para desesperar:

diverge o intento. Quero dizer que o tempo não reflui

e inexiste chance de se provar a resposta

do que seríamos ante o III Reich, mãos de SS ou meras mãos inocentes,

participação mais grave que a dos que fizeram por bom senso

ou interêsse indefensável.

Escrevi para então,

aos que dizem não posso, tenho limitações,

posso ser pôsto de lado, à margem de direitos e comodidades,

ou aos que têm dúvida de que a mudança é ótima.

Escrevi aos lúcidos, aos que mais rápido entendem o símbolo

e outra qualquer linguagem: aos que, entretanto, calam.

Acuso êste bom senso de salvar-se

roubando balsas ao barco

que se tomou pra viagem.

 

Mas tenho certeza de que, se apenas

êsses existissem, ainda amargaríamos o III Reich,

como fruto constante

na bôca:

 

fruto que não se come nem se joga fora.

 

Escrevo e sei que a todo tempo houve outros,

como êstes aprendo e me comovo,

e mesmo que soçobre o barco num relativo naufrágio,

me mantenho atento às perseguições do porto.

(1965)

Você também pode se interessar por

— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

Além dos nomes acima muitas outras pessoas colaboraram com o projeto. Para uma lista mais completa de agradecimentos, confira a página Sobre o projeto.

O MPAC é um projeto de caráter científico, educativo e cultural, sem fins lucrativos. É vedada a reprodução parcial ou integral dos conteúdos da página para objetivos comerciais. Caso algum titular ou representante legal dos direitos autorais de obras aqui reproduzidas desejem, por qualquer razão e em qualquer momento, excluir algum poema da página, pedimos que entrem em contato com a nossa equipe. A demanda será solucionada o mais rapidamente possível.

— Financiamento e realização

© 2025 Todos os direitos reservados