I. Protocolo Vegetal

Manoel de Barros

I. PROTOCOLO VEGETAL

 

 

1.

 

Trata de episódio que veio a possibilitar a descoberta de

um caderno de poemas

 

   Prenderam na rua um homem que entrara na

   prática do limo

 

   lista dos objetos apreendidos no armário gavetas

buracos de parede, pela ordem: 3 bobinas enferrujadas

1 rolo de barbante 8 armações de guarda-chuva 1 boi

de pau 1 lavadeira renga de zinco (escultura inacabada)

1 rosto de boneca — metade carbonizado — onde se

achava pregado um caracol com a sua semente viva

3 correntes de latão 1 caixa de papelão contendo pre-

gos ruelas zíperes e diversas cascas de cigarras estoura-

das no verão 1 caneco de beber água 1 boneco de pano

de 50 centímetros de altura com inscrições nas costas

"O FANTASMA DE OLHOS COSTURADOS" 2 senho-

ras da zona (esculturas em mangue) 29 folhas de cader-

no com escritos variados sob os títulos abaixo:

   a – 29 escritos para conhecimento do chão atra-

       vés de São Francisco de Assis

   b – protocolo vegetal

   c – retrato do artista quando coisa

   d – a criatura sem o criador

   e – você é um homem ou um abridor de lata?

 

e mais os seguintes pertences de uso pessoal:

  o pneu o pente

  o chapéu a muleta

  o relógio de pulso

  a caneta o suspensório

  o capote a bicicleta

  o garfo a corda de enforcar

  o livro maldito a máquina

  o amuleto o bilboquê

  o abridor de lata o escapulário

  o anel o travesseiro

  o sapo seco a bengala

  o sabugo o botão

  o menino tocador de urubu

  o retrato da esposa na jaula

  e a tela

 

 

2.

 

Descrição da tela pelo Dr. Francisco Rodrigues de Miran-

da, amigo do preso

 

o artista recolhe neste quadro seus companheiros

pobres do chão: a lata a corda a borra vestígios de árvores

etc.

 

realiza uma colagem de estopa arame tampinha de

cerveja pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições

produzidas em muros — números truncados caretas

pênis coxas (2) e 1 aranha febril

 

tudo muito manchado de pobreza e miséria que se

não engana é da cor encardida entre amarelo

 

e gosma

 

 

3.

 

Seria o homem do Parque?

 

 o homem tinha 40 anos de líquenes no Parque

 

 era forte de ave

 

 gafanhotos usavam sua boca

 

 quase sempre nos intervalos para o almoço

 era acometido de lodo

 

 à noite seria carregado por formigas até as

 bordas de um lago

 

 madrugada contraía orvalho nas escamas e na

 marmita

 

 

4.

 

Palavras de Lúcio Ayres Fragoso, professor de física em

São Paulo, compadre do preso, a título de esclarecimento

à Polícia

 

para começar ninguém jamais garantiu que coisa

era aquele bicho

 

o mal-traçado?

o tritão dorminhoco?

o irmão desaparecido de Chopin?

o homem de borracha?

 

conheci-o

em seu escritório

jogando bilboquê

 

era sempre arrastado para lugares com musgo

 

por meio de ser árvore podia adivinhar se a terra

era fêmea e dava sapos

 

via o mundo como a pequena rã vê a manhã de

dentro de uma pedra

 

pela delicadeza de muitos anos ter se agachado

nas ruas para apanhar detritos — compreende

o restolho

 

a esse tempo lê Marx

 

tem mil anos

 

tudo que vem da terra para ele sabe a lesma

 

é descoberto dentro de um beco

abraçado no esterco

que vão dinamitar

 

antes de preso fora atacado por uma depressão mui

peculiar que o fizera invadir-se pela indigência: uma de-

pressão tão grande dentro dele como a ervinha rasteira

que num terreno baldio cresce por cima de canecos en-

ferrujados pedaços de porta arcos de barril...

 

 era de profissão encantador de palavras

 

 ninguém o reconheceria mais

 

 resíduos de Raskolnikof encardiam sua boca de

Pierrô muito comida de tristeza

 

 e sujo

 

 

5.

 

Antissalmo por um desherói

 

 a boca na pedra o levara a cacto

 a praça o relvava de passarinhos cantando

 ele tinha o dom da árvore

 ele assumia o peixe em sua solidão

 

 seu amor o levara a pedra

 estava estropiado de árvore e sol

 estropiado até a pedra

 até o canto

 estropiado no seu melhor azul

 procurava-se na palavra rebotalho

 por cima do lábio era só lenda

 comia o ínfimo com farinha

 o chão viçava no olho

 cada pássaro governava sua árvore

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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