I. PROTOCOLO VEGETAL
1.
Trata de episódio que veio a possibilitar a descoberta de
um caderno de poemas
Prenderam na rua um homem que entrara na
prática do limo
lista dos objetos apreendidos no armário gavetas
buracos de parede, pela ordem: 3 bobinas enferrujadas
1 rolo de barbante 8 armações de guarda-chuva 1 boi
de pau 1 lavadeira renga de zinco (escultura inacabada)
1 rosto de boneca — metade carbonizado — onde se
achava pregado um caracol com a sua semente viva
3 correntes de latão 1 caixa de papelão contendo pre-
gos ruelas zíperes e diversas cascas de cigarras estoura-
das no verão 1 caneco de beber água 1 boneco de pano
de 50 centímetros de altura com inscrições nas costas
"O FANTASMA DE OLHOS COSTURADOS" 2 senho-
ras da zona (esculturas em mangue) 29 folhas de cader-
no com escritos variados sob os títulos abaixo:
a – 29 escritos para conhecimento do chão atra-
vés de São Francisco de Assis
b – protocolo vegetal
c – retrato do artista quando coisa
d – a criatura sem o criador
e – você é um homem ou um abridor de lata?
e mais os seguintes pertences de uso pessoal:
o pneu o pente
o chapéu a muleta
o relógio de pulso
a caneta o suspensório
o capote a bicicleta
o garfo a corda de enforcar
o livro maldito a máquina
o amuleto o bilboquê
o abridor de lata o escapulário
o anel o travesseiro
o sapo seco a bengala
o sabugo o botão
o menino tocador de urubu
o retrato da esposa na jaula
e a tela
2.
Descrição da tela pelo Dr. Francisco Rodrigues de Miran-
da, amigo do preso
o artista recolhe neste quadro seus companheiros
pobres do chão: a lata a corda a borra vestígios de árvores
etc.
realiza uma colagem de estopa arame tampinha de
cerveja pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições
produzidas em muros — números truncados caretas
pênis coxas (2) e 1 aranha febril
tudo muito manchado de pobreza e miséria que se
não engana é da cor encardida entre amarelo
e gosma
3.
Seria o homem do Parque?
o homem tinha 40 anos de líquenes no Parque
era forte de ave
gafanhotos usavam sua boca
quase sempre nos intervalos para o almoço
era acometido de lodo
à noite seria carregado por formigas até as
bordas de um lago
madrugada contraía orvalho nas escamas e na
marmita
4.
Palavras de Lúcio Ayres Fragoso, professor de física em
São Paulo, compadre do preso, a título de esclarecimento
à Polícia
para começar ninguém jamais garantiu que coisa
era aquele bicho
o mal-traçado?
o tritão dorminhoco?
o irmão desaparecido de Chopin?
o homem de borracha?
conheci-o
em seu escritório
jogando bilboquê
era sempre arrastado para lugares com musgo
por meio de ser árvore podia adivinhar se a terra
era fêmea e dava sapos
via o mundo como a pequena rã vê a manhã de
dentro de uma pedra
pela delicadeza de muitos anos ter se agachado
nas ruas para apanhar detritos — compreende
o restolho
a esse tempo lê Marx
tem mil anos
tudo que vem da terra para ele sabe a lesma
é descoberto dentro de um beco
abraçado no esterco
que vão dinamitar
antes de preso fora atacado por uma depressão mui
peculiar que o fizera invadir-se pela indigência: uma de-
pressão tão grande dentro dele como a ervinha rasteira
que num terreno baldio cresce por cima de canecos en-
ferrujados pedaços de porta arcos de barril...
era de profissão encantador de palavras
ninguém o reconheceria mais
resíduos de Raskolnikof encardiam sua boca de
Pierrô muito comida de tristeza
e sujo
5.
Antissalmo por um desherói
a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão
seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore