HIPÓTESE DE MAIO
Sobre a mesa o relógio
anuncia meu tempo
que se desfaz em crivo
de aflito pensamento.
De que jardins me evado
de que amores provenho
de que enredo impreciso
se armara o que estou sendo
entre meus dicionários
fragmentos de retratos
os rútilos canários
enfunadas cortinas.
Os amigos inquietos
o silêncio a aumentar
concêntrico, severo
em torno das conversas
além da ausência, além
dos constantes afetos.
Resíduos de passeios
em paisagens alheias
empilham-se em gavetas —
cartas de amor nos seus
macios envelopes
risadas e conchinhas
a voz que fala sempre
no fundo da sonata
diletantes poemas
todos concordemente
citando o Coração
ladeado de flores
zéfiros sorridentes
(e os sabia chorosos).
As gavetas estufam
o que nelas se havia
adquire vida própria
um sitiado encanto
e expulsa da memória
de que participava
com escassa competência
eu, que leve o lembrava.
O conteúdo humano
desse ditoso espólio
palpita, e entretanto
— semicerrados olhos
agitar de cambraia —
invencível o sono
se engolfa na dolência.
Sono maior que o escuro
a corromper a luz
diuturna nostalgia
de um sonho, não sei mais
ao certo o que seria.
Coágulo sombrio
adensando-se em zona
fechada, onde me perco
neste mês-de-maria
pensando o que seria
de mim, no dissolvido
rumor que me povoa
sem conduzir à fala
da sempre poesia
sem revelar o muito
de amar que pretendia
antes de antes, não sei
ao certo o que seria.
Mas bem que perfazia
um circuito profundo
onde a primeira imagem
(início e ata finda)
que ainda se reflete
é a da jovem correndo
pela campina, soltos
cabelos, e as glicínias
a descer pelos ombros
prendendo-se na boca
primavera garrida
pelo azul florentino.
Na mão direita tinha
uma roseira viva
juritis entoavam
campestres ladainhas
e pela transparência
de sua carnação
via-se-lhe o coração
com um só nome gravado
a rubro, fulcro infenso.
Corria na campina
fantástica, e ainda
posso lembrar que em fuga
amava sempre, e ria.
Comentário do pesquisador
Em geral, a poesia de Lélia Coelho Frota tende mais ao lírico e ao metafísico, sendo pouco afeita, de modo mais direto, à política, como em geral apontam seus analistas, a exemplo de Benedito Nunes e Heloísa Buarque de Hollanda. Assim, é difícil localizar, em sua "Poesia reunida", referências explícitas e incontestáveis aos Anos de Chumbo. Não obstante, o poema "Hipótese de maio", texto que abre o livro "Caprichoso desacerto" (1965), traz alusões aos problemas do tempo. Logo no começo, é indicado que o próprio tempo traz um "aflito pensamento". Há também um "silêncio a aumentar" (censura?) e um "sitiado encanto" (cerceamento político?) sendo mencionados. Em torno do eu lírico que não diz explicitamente as questões atinentes à Ditadura, aparece um "rumor" que o povoa sem chegar a conduzir a fala, de maneira que, efetivamente, está muito sutil a problematização da época. Apesar de todas essas dificuldades, o próprio silêncio, o próprio não-dito, parece indicar uma tensão existente na época. Dessa forma, o texto "Hipótese de maio" parece indicar, metapoeticamente, muito da obra de Lélia Coelho Frota, pois em seu não dizer está, também, a sugestão de uma pressão vinculada aos problemas do tempo.