GYMNASIUM
Enquanto não aprendia Matemática
outros
operavam juros em minha carne operária
colhendo notas e cifras na classe
de minha ignorância primária.
Enquanto mal-decorava planícies, pontos altos, capitais,
outros
instalavam chaminés no meu nariz, desviando rios
e dinheiro, desabando montes de lixo
e me deixando a poluída cicatriz.
Enquanto o professor de Ciências Naturais abria o corpo humano
com suas artérias e sonhos,
minha tireóide azul e branca pulsava entre as coxas da colega
e eu retinha o sangue venal do meu desejo
vertendo mudo a amarela bílis do medo
paralisado
porque num canto da sala me olhava duro
— um esqueleto.
Enquanto nas aulas de Canto Orfeônico desentoava
hinos marciais e Paris, Polônia e Holanda caíam em chamas
sob a pauta e pata da SS alemã
meus próprios generais exercitavam clarins
sobre meus tímpanos, fincando mil bandeiras nos meus olhos
e desolando metade de minha vida em mim.
Enquanto esbatia diedros nos cadernos de espiral
treinando mãos e dedos com cola e tédio nos Trabalhos Manuais
outros
ágeis, hábeis
armavam pirâmides de lucros
passavam uma borracha em meu passado-futuro
deixando-me trabalhador boçal-braçal
suando nos canaviais com a elástica fome
que se expande pelos seringais.
Enquanto o professor de Química e Física derramava cadinhos
e provetas, acionava esferas e discos a demonstrar
que ciência é coisa séria,
outros
faziam sua alquimia com o aguado sangue do povo
transformando osso em ouro, como se cobaias
devessem perecer
para comprovar as leis de Newton
e a relatividade do sonho e da matéria.
Enquanto eu perdia o meu Latim
e o demônio declinava no meu corpo seus pecados
eu
romano, desterrado com meu falar ibérico e vulgar
via Catilina a conspirar, Cícero a verberar
e no senado a traição a prosperar, enquanto minha triste Gália
era partida em partes três:
— de Júlio César todas três.
2
Quiseram-me professor de História.
Cheguei a sê-lo de Geografia
e de outras cartas
com pífios tesouros e ilhas.
O boletim chegando, e eu
num mar morto e vermelho
envergonhado envergonhando.
Os irmãos, sempre melhores.
Os colegas — os primeiros, para a Escola Militar.
Eu já carpindo o inútil pendor das Letras,
perdendo-me em Números e Levíticos, mas achando-me
em Salmos e Cânticos e enrodilhado na Gênesis do verbo
como um escolar crucificado.
— Estude línguas, rapaz!
Francês, mal-aprendi. Explodiam
escolas e hospitais em Argel. Caíam
em frangalhos em minha cabeça
personagens de Molière e Jarry.
— Veja o Inglês — língua moderna. E eu lá ia
entre coreanos e vietnamitas arrozais
segregando vermelho e preto
e outros filmes coloridos nas vesperais.
Enquanto ciciava o Espanhol
com o professor da Terra do Fogo, "la guardia civil caminera"
me levava com Federico "codo con codo",
e espremia o pescoço dos bascos no mesmo garrote vil.
Iniciava o Italiano. Os terroristas
ainda não formigavam nas ruínas dos partidos,
Roma exibia as volumosas tetas das atrizes
e eu já sonhava com a mulher que tornaria minha vida uma cidade
aberta, infensa a novas guerras de conquistas.
Hoje abro o livro de Alemão. Seqüestradores
do industrial e do barão garganteiam nos jornais
uma nova canção de Lorelai.
3
Tudo isto acontecendo
e eu enfrentando a sintaxe policial armada
ao sol da ditadura semântica implantada,
trocando de uniforme numa morfologia antiquada
gritando anseios de uma fonética silenciada.
Aluno pouco aplicado,
professor às avessas ao repassar o imerso
imagino a perdida infância da História.
Certo não saberei nunca a língua dos caldeus e dos sumérios.
Mas nem assim me livro de minhas alheias misérias
pra sempre escritas na carteira.
Certo não aprenderei o Sânscrito
— língua de suicidas mansos.
Feliz era meu pai, fugiu da escola
— mas sabia o Esperanto. Essa língua
sem história, sangue e medo
que não é coisa desse mundo
— mas língua de querubim.