Gymnasium

Affonso Romano de Sant'Anna

GYMNASIUM

 

Enquanto não aprendia Matemática

outros

  operavam juros em minha carne operária

colhendo notas e cifras na classe

de minha ignorância primária.

 

Enquanto mal-decorava planícies, pontos altos, capitais,

outros

  instalavam chaminés no meu nariz, desviando rios

e dinheiro, desabando montes de lixo

e me deixando a poluída cicatriz.

 

Enquanto o professor de Ciências Naturais abria o corpo humano

com suas artérias e sonhos,

minha tireóide azul e branca pulsava entre as coxas da colega

e eu retinha o sangue venal do meu desejo

vertendo mudo a amarela bílis do medo

   paralisado

porque num canto da sala me olhava duro

   — um esqueleto.

 

Enquanto nas aulas de Canto Orfeônico desentoava

hinos marciais e Paris, Polônia e Holanda caíam em chamas

sob a pauta e pata da SS alemã

 meus próprios generais exercitavam clarins

sobre meus tímpanos, fincando mil bandeiras nos meus olhos

e desolando metade de minha vida em mim.

 

Enquanto esbatia diedros nos cadernos de espiral

treinando mãos e dedos com cola e tédio nos Trabalhos Manuais

outros

  ágeis, hábeis

  armavam pirâmides de lucros

passavam uma borracha em meu passado-futuro

deixando-me trabalhador boçal-braçal

suando nos canaviais com a elástica fome

que se expande pelos seringais.

 

Enquanto o professor de Química e Física derramava cadinhos

e provetas, acionava esferas e discos a demonstrar

que ciência é coisa séria,

outros

  faziam sua alquimia com o aguado sangue do povo

transformando osso em ouro, como se cobaias

devessem perecer

 para comprovar as leis de Newton

e a relatividade do sonho e da matéria.

 

Enquanto eu perdia o meu Latim

e o demônio declinava no meu corpo seus pecados

eu

  romano, desterrado com meu falar ibérico e vulgar

via Catilina a conspirar, Cícero a verberar

e no senado a traição a prosperar, enquanto minha triste Gália

era partida em partes três:

   — de Júlio César todas três.

 

2

 

Quiseram-me professor de História.

Cheguei a sê-lo de Geografia

    e de outras cartas

com pífios tesouros e ilhas.

 

   O boletim chegando, e eu

   num mar morto e vermelho

   envergonhado envergonhando.

 

Os irmãos, sempre melhores.

Os colegas — os primeiros, para a Escola Militar.

Eu já carpindo o inútil pendor das Letras,

perdendo-me em Números e Levíticos, mas achando-me

em Salmos e Cânticos e enrodilhado na Gênesis do verbo

como um escolar crucificado.

 

— Estude línguas, rapaz!

 

Francês, mal-aprendi. Explodiam

escolas e hospitais em Argel. Caíam

em frangalhos em minha cabeça

personagens de Molière e Jarry.

 

— Veja o Inglês — língua moderna. E eu lá ia

entre coreanos e vietnamitas arrozais

segregando vermelho e preto

e outros filmes coloridos nas vesperais.

 

Enquanto ciciava o Espanhol

com o professor da Terra do Fogo, "la guardia civil caminera"

me levava com Federico "codo con codo",

e espremia o pescoço dos bascos no mesmo garrote vil.

 

Iniciava o Italiano. Os terroristas

ainda não formigavam nas ruínas dos partidos,

Roma exibia as volumosas tetas das atrizes

e eu já sonhava com a mulher que tornaria minha vida uma cidade

aberta, infensa a novas guerras de conquistas.

 

Hoje abro o livro de Alemão. Seqüestradores

do industrial e do barão garganteiam nos jornais

uma nova canção de Lorelai.

 

3

 

Tudo isto acontecendo

 

   e eu enfrentando a sintaxe policial armada

   ao sol da ditadura semântica implantada,

   trocando de uniforme numa morfologia antiquada

   gritando anseios de uma fonética silenciada.

 

Aluno pouco aplicado,

professor às avessas ao repassar o imerso

imagino a perdida infância da História.

 

Certo não saberei nunca a língua dos caldeus e dos sumérios.

Mas nem assim me livro de minhas alheias misérias

pra sempre escritas na carteira.

 

Certo não aprenderei o Sânscrito

 — língua de suicidas mansos.

 

Feliz era meu pai, fugiu da escola

— mas sabia o Esperanto. Essa língua

sem história, sangue e medo

 

que não é coisa desse mundo

— mas língua de querubim.

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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