Gil é como os pré-socráticos, vai além da filosofia, pensa, é um
pensador que canta, dança, melodiza & harmoniza seus pensamentos. Como
nas tribos primitivas (primitivas = super-contemporâneas porque ideogrâ-
micas como a flecha e o relâmpago) os feiticeiros são sábios, e no tao-
ísmo do Yang & Yin.
Ao mesmo tempo é a encruzilhada do movimento tropicalista, seu lado
mais negro, que acabou com o mal entendido separatista de arte elitista
versus arte popular, acabou numa união-unidade, para além dos (se compa-
rados ao tropicalismo) ainda estreitos horizontes descortinados pela
bossa-nova, e pela canção política de protesto linear. Gil absorve tudo
isso e torna-se diferente.
Ausência de dogmatismo e encruzilhada de tudo: máquina e anti-máquina,
ascetismo e drogas, campo e cidade (Refazenda & Sociedade anônima), negri-
tude dos tãs-tãs & cultura branca até universidade de economia. Eis Gil:
o viajante dos opostos, e que os amalga de modo surreal dentro do cotidi-
ano nacional daquele bom-humor antes do zen de "aquele abraço" escrito na
prisão, uma prisão misteriosa e enigmática como só acontece a um pré-socrá-
tico cantante, como Lao-Tsé, Anaxágoras, Pitágoras, Heráclito.
Há sempre uma mensagem filosófica em suas músicas. Um chamado de pai,
pai de família, de nação, de tribo, de santo. Gil tem muito de líder e es-
tadista. Por isso apoia o profeta Jorge Mautner!
Namora a agudeza de diamantes do concretismo e apoia-se na genial base
populista de um Jackson do Pandeiro, através das tradições assimiladíssimas
de Dorival Caimmy, João Gilberto e Ary Barroso. Avança para além de Jimi
Hendrix, com Strauss e Mahler e Walter Smetak da Bahia, um radical de eru-
dito que virou misticismo além-além-atonal com instrumentos precários e
perecíveis. A matéria plástica da guitarra elétrica e o som de pau de um
berimbau suado. Gil gosta de encarnar as contradições e apresentá-las apa-
ziguadas, eis o que eu acho sua maior qualidade, prontas pra comer, por
isso sua mais profunda seiva poética é o ser e o dizer mais completo da-
quilo que se poderia chamar de alma democrática brasileira, a surgir sur-
gindo, absolutamente original, negra e mestiça, sonora e pensadora, calma,
disposta a superar e a cicatrizar feridas, o rio de um continente e o mar
de atlântida misturados na batucada da pororoca. Gil gosta do amazonas,
ele é como um todo para mim, o amazonas da essência poético-filosófica
autêntica, sem dogmatismos.
Comentário do pesquisador
O texto não tem título, tampouco verso. Isso dificulta a colocação de um nome para a produção. Ademais, dificulta a sua classificação como poema. Será mesmo um poema? Um poema em prosa? Um fragmento filosófico mais ou menos no sentido observado em pensadores como Schlegel ou mesmo no sentido visto nos pré-socráticos? Todas essas questões, além de colocarem em tensão o texto em si, colocam em tensão toda a obra mautneriana. Na medida que ela caminha próxima da noção de "Kaos", a qual, entre outros pontos, mescla gêneros discursivos vários, é sempre difícil saber quais textos do autor incluir em uma reunião das referências poéticas aos Anos de Chumbo. Não obstante, se a conclusão sobre a pergunta parece impossível, se concluir a definição de poema é sempre uma tarefa por se fazer, o fragmento-poema-em-prosa visto aqui ajuda a mostrar que sempre pode haver muito mais em Mautner. Além disso, o texto aborda a figura de Gilberto Gil, a qual é ligada à "alma democrática brasileira"; isso se dá em um livro ("Fundamentos do Kaos") publicado em 1985, mas provavelmente escrito em torno de 1982, como indica o último texto do volume.