Escuto o tempo fluindo
no rumor azul da tarde.
E sinto-o ventar em mim
e doer bem onde arde
meu coração — doer com
incontáveis estilhaços
de idos objetos e
de mim mesmo.
E escuto passos
me acompanhando: são meus
próprios passos — de ontem e antes
e hoje. Talvez de amanhã.
Em seus lenços ondulantes,
o vento que sopra o tempo
oculta fundos mistérios
— e do que era sorriso
compõe esses rostos sérios
que nos encaram do espelho
e de outros corpos
e vemos,
sob eles, os suaves traços
de quem em nós já perdemos.
Escuto o tempo fluindo,
fugindo. Sobe um soluço
da carne de tudo: móveis,
tecidos, metais. Que forte
é a morte!
E só a memória
vive, vive-nos, e soa
seus violinos de névoa
sob um frio sol que monta
num céu de assombro: o Perdido.
Essa lenda que se amplia
no peito — já erodido
pelas distâncias — que vai
explodir em cada gota,
seixo, brilho, sombra, hálito
de alma
(essa asa rota
sangrando os seus enganos
entre as paredes do verso)
até nada se mover
sobre o extinto universo.