Frases para a desordem do dia

Maciel de Aguiar

FRASES PARA A DESORDEM DO DIA

 

               "Eu não nasci para uma época como esta.

                                          George Orwell

 


  O passado estéril 

  diz ao presente aflito: 

  — Eu quero a noite
    e a tempestade.
  Os mortos de ontem
  dizem aos condenados de hoje:
  — Tragam os nossos atestados de óbito
    que lhes emprestaremos as nossas sepulturas.
  As trevas dos infernos
  dizem à luz do fim do túnel:
  — Essa chamazinha de merda
    não vos devolverá a claridade.
  O carrasco que cospe no olho da vítima 

  diz às paredes do cárcere:
  — Somos frios
    e absolutamente sem alma.
  Os necrófilos dos cemitérios clandestinos 

  dizem aos cadáveres indefesos:
  — Não sentirão a menor dor,
    portanto, não tenham escrúpulos.
  O juiz, do alto da toga,
  diz ao réu confesso:
  — Nunca mais se atreva a amar a Pátria
    acima de todas as coisas. 

  As ampulhetas do tempo perdido 

  dizem aos cassadores de cidadania: 

  — Desgraçados são aqueles que querem

    ressuscitar o lado morto da vida.
  A arma assassina
  diz ao corpo esvaído em sangue: 

  — O homicídio ou o suicídio
    é uma questão de pontaria. 

  O afogado diz ao mar revolto 

  que lhe traga a vida: 

  — Oh, grandiosa sepultura,

     empurre-me às suas praias. 

  Os esqueletos que andam pelas ruas 

  dizem aos que pensam
  que ainda estão vivos:
  — Somos as imagens hoje
    nos espelhos em que olhar-se-ão no amanhã. 

  Os demônios que atordoam os poetas 

  dizem às páginas dos livros:
  — Nós semeamos as dores
    sobre a cabeça dos que choram
    pelas dores que não são inteiramente suas.
  A eternidade do regime
  diz aos que se atrevem à ressurreição:
  — Enforcaremos a todos
    com as próprias almas.
  O censor implacável
  diz aos editores dos jornais:
  — Existem o fato
    e a versão que se pode dar ao fato.
  A mãe em prantos
  diz à fotografia do filho desaparecido: 

  — Do passado faz-se a sombra,
    da sombra desfaz-se a vida.
  O general colérico
  diz ao soldado que aprende 

  a lição da caserna:
  — Matar, sempre!
    Explicar, jamais!
  O exilado diz ao país
  distante dos pés:
  — Espero ansioso
    pela hora do esquecimento. 

  O torturado em sua rebeldia final
  diz ao algoz:
  — O pedido de indulgência
    não me será arrancado
    nem com as entranhas.

  O tempo de morrer 

  diz ao destino dos homens: 

  — O fim nunca deve 

    justificar os meios.
  O pânico da hora finda 

  diz à alvorada que anuncia
  o término de uma existência: 

  — Toque os clarins
    em homenagem aos vencidos.

  O tirano com busto em praça pública 

  diz ao povo em festa:
  — Eu lhes darei pão e circo,
    em troca me darão a cumplicidade. 

  A Ordem do Dia que desvirgina a manhã 

  diz à primavera sem flores:
  — Esmagaremos todos os jardins 

    que se atreverem a florescer 

    diante dos nossos coturnos.
  Eu digo no assombro
  de meu quarto de pensão:
 Então, não haverá amanhã… 

 


                      Rio de Janeiro, 17.9.72

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