FALA DE CHICO-REI
Rei,
duas vezes, Rei, Rei para sempre,
Rei africano, Rei em Vila Rica,
Rei de meu povo exilado e de sua esperança,
Rei eu sou, e este Reino em meu sangue se inscreve.
Arranquei-o do fundo da mina da Encardideira,
partícula por partícula, sofrimento por sofrimento,
com paciência, com astúcia, com determinação.
Era um Reino que ansiava por seu Rei.
Tinha a cor do Sol faiscando depois de sombria navegação,
a cor de ouro da liberdade.
Hoje formamos uma só Realeza, uma só Realidade
neste alto suave de colina mineira.
Aqui edifiquei a minha, a nossa Igreja
e coloquei-a nas mãos da virgem etíope,
nossa princesa santa e sábia: Efigênia,
sob as bênçãos da Rainha Celeste do Rosário.
Meus súditos me são fiéis até o sacrifício,
por lei de fraternidade, não de medo ou tirania.
São livres e alegres depois de tanta amargura.
A alegria de meu povo explode
em charamelas, trombetas e gaitas,
rouqueiras de estrondo e júbilo,
canções e danças pelas ruas.
A alegria de meu povo esparrama-se
no trabalho, no sonho, na celebração
dos mistérios de Deus e das lutas do Homem.
Nossa pátria já não está longe nem perdida.
Nossa pátria está em nós, em solo novo e antiga certeza.
Amanhã, quem sabe? os tempos outra vez serão funestos,
nossa força cairá em cinza enxovalhada.
(Sou o Rei, e o destino da minha gente
habita, prenunciador, o meu destino.)
Mas este momento é prenda nossa e renascerá
de nossos ossos como de si mesmo.
Em liberdade, justiça e paz,
num futuro que a vista não alcança,
homens de todo horizonte e raça extrairão de outra mina mais funda e inesgotável
o ouro eterno, gratuito, da vida.
Comentário do pesquisador
O poema de Drummond evoca a figura lendária de Chico Rei – rei africano tornado escravo no Brasil e que, em Ouro Preto, consegue comprar sua alforria e tornar-se rico comerciante de ouro. Focando principalmente na figura do herói negro, Drummond ressalta nele a busca pela liberdade e a obstinação contra a tirania, permitindo uma leitura à luz dos anos de chumbo em que o poema foi publicado. Para uma análise detida do poema, recomenda-se o artigo de Fabio Cesar Alves, "Em cinza enxovalhada': Drummond e a ditadura militar", disponível em https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/164958.