ESTAS BANDEIRAS NÃO SERVEM:
ESTÃO PODRES
— a Miguel Arraes, amigo, que voltou como sempre foi:
um sentimento de mundo atualmente voltado para
a vida dos pobres e dos oprimidos.
— a Luiz Ignácio, o Lula, até agora autêntico representante
dos anseios da classe trabalhadora, ao lado
de Arnaldo Gonçalves, Jacó Bittar, Ivan Pinheiro,
Olívio Dutra, Marcelo Gato e outros.
— a Carlos Nelson Coutinho, Darcy Ribeiro, Paulo Freire,
Leandro Konder e Florestan Fernandes, arquitetos de
humana-idade.
— aos estudantes do meu país.
— A Leonel Brizola, gaúcho carismático e amigo da liberdade,
com a lembrança de que este país mudou e que
o seu povo quer hoje o direito de não ser mais manipulado,
de cima para baixo, por aqueles que apenas visam
distanciá-lo de uma história socialista e mais humana.
— aos militares conscientes de que não se deve permitir
ao poderio econômico e imperialista das transmultinacionais
interferir nos atos com que o povo brasileiro
busca inventar livremente o seu destino.
— aos senadores Jaison Barreto, Henrique Santillo e
Pedro Simon, exemplos de uma renovação temporariamente
necessária nos questionamentos políticos da vida brasileira.
— a Dom Evaristo Arns, de uma Igreja que se quer viva
na sombra operária da cruz de Cristo.
— a Wilson Fadul, meu amigo.
Estas bandeiras não servem: estão podres
nesta janela aberta para o pátio
das prisões e dos quartéis. E para a alma
dos que comandam leis e regimentos.
Quero a coragem de negar
o espelho triste desta hora
travestida de revolução.
O mundo muda tão depressa,
que o discurso proferido ontem
fica de um antigo tão antigo
como a barba de um rei assírio
na astronave que ultrapassa o sol.
Nas telas da TV e nas manchetes
os palradores se atropelam hoje
no palco de uma história doida
como o enterro das suas próprias estátuas
no penico sob a cama de um velho.
Que direitos humanos são esses
que te fizeram agora deputado
e despejaram o tempo nesta fossa
em que desde a infância sou homem
enlameado pela sujeição das horas?
Sei que não sou servo da poesia
tal como talvez gostasse
ou mesmo tivesse precisão.
Nem pude acumular em meu silêncio
os instrumentos para tanto e tanto
navegar ou mesmo naufragar
sobre os vidros do invisível
subitamente aberto como a flor
do mundo sob a nossa pele.
Gullar e João Cabral, esses são poetas
e moram, por vocação, nessas corolas
do inefável em que se veste
o esplendor do tempo quando é belo.
Eu sou apenas mais um detido que decifra
os telegramas da liberdade conversando
com os ponteiros da esperança sob o tempo
que encarcera a vida nos porões da história.
Estas bandeiras não servem: estão podres.
Esgotadas, nada mais têm a dizer
ao homem que fura as crostas do que morre
e pesca atrás de tudo um pensamento
que velozmente em liberdade corre
— como se fosse uma criança, ou mesmo um bicho —
rumo ao sem fim em que se explica
o porquê do som a transformar-se em dança.
Forçoso, no entanto, é reinventar-nos na cidade
e em suas esperanças de outras vidas
que não a destes gráficos, sem outra saída
que a de uma burocracia sem sonho e sem poesia.
Afinal, qual a novidade dessa ordem
que te beneficia como burocrata
e me deixa moído entre as maquinarias
e os seus ruídos, soterrado entre latas
vazias de sonho e de esperança vária?
Negar, este é o meu ofício maior
negar o que existe, negá-lo sempre.
Ah, a magia de cada crepúsculo
dentro do olho em que reside
teimosa, a luz inexistente de uma aurora!
No entanto, sei, eu sei que é preciso conquistar
e domesticar os crocodilos burocráticos do Estado.
E conhecê-los bem, e a tal ponto dominá-los
que então os eliminaríamos desde as suas entranhas
osso por osso, como quem brinca de lavar com o sol
esqueleto escuro do mais acumulado dos nossos ódios.
Aprisionado às árvores naturais, o céu seria a técnica
os homens entoariam, então, cantigas de roda em torno
dos planetas ou dos desejos de cada um. E nos museus ficariam
o machado de pedra, o Estado e o tecido institucional dos medos.
Tudo isso seria possível, meu bem, se não fossem estas bandeiras
postadas como aranhas na antiguidade cinzenta deste tempo
em cujas teias qualquer sonho é desumanamente transformado
em coisa oca, mera casca da existência em que brotara um dia.
Não é por desencanto, creio, que assim falo
e sim pelo encanto das revoluções que se fizeram
rumo ao socialismo. Sinto suas falhas e por isso canto
e clamo por outras bandeiras que não estas
onde o arame farpado circunscreve o dia
a ser trincheira apenas, guerra fria.
E o que fazer com os ruídos do acaso e os sons da liberdade
sobre o teclado das emoções que computador algum programa?
Dele, no entanto, é que surge a música do homem
entre as colunas do tempo a arquitetar-se em mundo.
Tirei a roupa da moça e zunimos sobre as rodas
de motocicletas feitas com as tíbias
de uma juventude que te sabe morta,
ó praça dos três poderes sem as cantorias
das comunidades que planto desde agora!
Não tenho a blusa amarela de Vladimir
e nem colhi entre os meus versos
a eternidade pisoteada ao longo
das castanholas e das guitarras de Lorca.
Lautreamont, foi com suas explosões que temperei
a primeira rua aprisionada entre os meus dentes.
De maneira rápida, própria dos pássaros caçados,
pulei de um livro para outro
ou de uma cama para outra
até salvar-me sem pouso no olhar dos operários.
E ali eu era as suas portas e o seu cárcere.
Retesada no final de horizontes, Cuba
também era assim, pomba e garra, luz e sombra
enquanto Marighela e Maranhão morriam
em caminhos diversos e sobre a mesma cruz
em que o lucro martela as mãos e os pés
dos assalariados de aqui e de alhures.
Ondas sem mar, estes políticos que ouço
não me dizem mais, a mim, amor de infâncias,
o que desejo ouvir quando pressinto o século
a carregar a sede do homem entre os umbrais
de um tempo que está e não está aqui.
Vejo-o nas bobinas girando um tempo dentro de outro tempo
na sala vazia em que o telex vive a desfolhar
cada vez mais o mundo que machuca
a pergunta subversiva dos que ousaram proclamar
a nudez dos monarcas atuais e das suas cortes.
Vejo-o, como o que se vê de olhos fechados,
no desejo de dar-se liberado ao que o sexo insinua
quando o seio solto salta sob a blusa aberta
ou a transparência da saia modela ventre e bunda
em cada porta, em cada esquina e em cada ônibus.
Vejo-o, sobretudo, nestes jovens
a caminhar entre os computadores
com seus blue-jeans, suas recusas, suas cantilenas
tão contrárias ao envidraçado olhar das tecnocracias
em que as emoções da vida são cronometradas
ao lado das mesas em que o mundo é repartido
entre talheres de prata e copos de ambição.
Vejo-o tal como a festa ainda a ser gerada
na comprida sombra do operário em greve
lado a lado com a luta e com a esperança.
Mas, por enquanto, tudo não passa de bolhas de ar
estouradas, ânsia e promessa de utopias, bolhas
de bocas afogadas nas águas tristes do tempo
sob o mundo caduco que ainda está no trono.
Que coisa triste, amigo, ver esses políticos
a falar de trabalhismo sem trabalhadores.
Que coisa triste vê-los agrupados como lobos
a olhar do alto o gado nas planícies.
Como usar a dominância em outros moldes
para que os seus negócios não descambem
numa história em que o povo seja o dono
da riqueza a que se grudam como ostras
— esse é o verdadeiro discurso de suas fotos,
isso é o que os faz ágeis ou lerdos em suas danças
no cofre das empresas e nas ante-salas do Congresso.
Podres, porém ainda convidando
o barco das nuvens e dos ventos
as bandeiras
as bandeiras
as bandeiras
desmancham-se em trapos ainda coloridos
pelo sangue, pelo ódio, pela decisão
dos que as souberam erguer verticalmente vivas
como os raios de uma luz plantada
dentro da escuridão dos sonhos soterrados
sob a atual imponência das fábricas.
Traídas, as mãos calosas sempre se alevantam
a carregar, no Leste e Oeste, outras bandeiras
em cantorias feitas com as cores desses trapos
e com as ventanias que não cessam de assoprar
a fumaça das chaminés e o cheiro de chuva sobre o campo plantado.
Ah, a dança de santos e demônios, mutação constante, espiral
de séculos e séculos retorcidos! Ah, montões de gritos
a desaguar sobre as horas os pedaços encardidos
de todas as estátuas que se quiseram divindades
ou o azul deste céu que cada vez mais sabemos
enlameado e triste.
E por sabê-lo assim é que fazemos
no barro agora o céu que desejamos
igual ao céu que se deflagra
(no minuto que precede a morte)
no olhar do homem fuzilado
porque amou o próximo como a ele mesmo.
Eu quero novas bandeiras
quero a coragem de dizer que as quero
quero, sobretudo, não ter medo
de queimar as que apodreceram
na escuridão dos poderes que ora comandam
a consumação das ideias e dos fatos.
Novas bandeiras e a continuidade
das belezas antigas que ficaram
boiando, ecos de estórias e de lendas
das bandeiras que desapareceram
não por podres, mas por desgastadas
nas mãos que as souberam erguer
como arma, leito de amor e tenda
para as imensidões inda sem teto.
Quero-me novo nos modos do meu neto
abrindo outras portas que não estas.
Quero-me novo como o tempo que não teme
o espaço em branco a pedir uma poesia
pescada atrás do espelho em que se mira
o homem de agora nos possíveis do amanhã.
Quero-me novo, porém tão novo como
esta saudade incrível de pisar descalço
no turbilhão abandonado pelo homem
na sombra dos deuses que inventou
ao achar-se desnudo em frente do trovão
ou do que a morte não lhe dizia
como razão final de morrer. Ou de viver.
Eu quero, tenho que querer outras bandeiras
e as raízes da coragem de dizer que as quero.
Quero, sobretudo, não ter medo
de queimar as que apodreceram.
Rio, 15 e 16 de setembro de 1979