É ASSIM QUE DEVE SER FEITO

Claudio Willer

É ASSIM QUE DEVE SER FEITO

 

pouca gente é capaz de fazer tudo isso que fizemos

nos encontrar e ficarmos juntos

   nesta hora mais inexplicável

clarões de incêndios distantes

   refletindo-se em nossas peles

nossos gritos de prazer chicoteando as esferas da noite

  nossos gritos de prazer explodindo pela madrugada afora

    nossos uivos de prazer ecoando pelas ruas

   desta cidade agora adormecida

e esta confusão de pedaços de corpos

todos gritando o mesmo nome selvagem espalhados sobre a colcha

nossos corpos druídicos formando círculos mágicos sinalizando o reiní-

  cio dos tempos

nossos corpos que se precipitam como os regatos que escorrem pela encosta

  da montanha buscando seu rápido destino final

nossos corpos de vísceras entrelaçadas redescobrindo a pulsação das galáxias

nossos corpos no turbilhão do galope de potros bravos à beira-mar

nossos corpos com seus relâmpagos rompendo o calor denso da noite na

  selva tropical

nossos corpos de muitas vozes, muitas vozes que se confundem

nossos corpos sobre os quais viajamos como navegantes em busca da

  Terra Prometida

nossos corpos recobertos de inscrições que passamos dias e noites ten-

  tando decifrar

nossos corpos entregues a um êxtase canibal

nossos corpos percorrendo os labirintos do prazer e suas alamedas ladea-

  das por tufos de azaleia elétrica

nossos corpos de bruma, mapa de penugens, texto sânscrito

nossos corpos pisoteando o braseiro da memória dançando animados

  por um batuque que sai do centro da terra

nossos corpos mergulhando na água transparente de um lago gelado no

  desvão de uma gruta calcária

nossos corpos embarcando em uma nave especial feita de palha trançada

nossos corpos investidos de seus plenos poderes, salvo-condutos para

  qualquer viagem, licença para voar, passaporte para o delírio

nossos corpos suando gotas de fogo que escorrem por nossas costas

nossos corpos sombrios e úmidos nesta hora de fetos arborescentes e

  samambaias, agora liquefeitos contra os filtros do crepúsculo,

  transparentes como uma profecia

nossos corpos amarelos, azuis, laranja, cor de camaleão enlouquecido

  estampado contra as paredes do tempo

nossos corpos impressos em milhares de figurinhas coloridas que são

  distribuídas entre adolescentes dos subúrbios

nossos corpos anunciando catástrofes iminentes: colisão de navios, que-

  da de meteoros, revoada de aves de rapina, nuvem de gafanhotos,

  maremotos, clarões no horizonte

nossos corpos atravessando a noite contando histórias um para o outro,

  lendas egípcias e narrativas de punhais

nossos corpos recobertos pelo sal carregado por um vento de maresias

nossos corpos explodindo como grandes sóis bêbados

nossos corpos trêmulos diante da descoberta de seus mananciais subterrâneos

nossos corpos vibrando como bandeiras de tribos nômades tremulando ao vento

nossos corpos transformados em horizonte de nenúfares e fogos-fátuos

nossos corpos pulsando na infinita dimensão das enxurradas de sangue em nossos

  emaranhado de veias e da sequiosa vegetação dos nossos baixos-ventres

nossos corpos de litania, saga, giesta heroica, narrativa de amantes ata-

  dos a penhascos de beira-mar

nossos corpos revelando a verdadeira história dos furacões, do vente quen-

  te ao deserto, da lava escorrendo pelo dorso do vulcão

nossos corpos em convulsão como se mortalmente feridos, latejando

  como chagas abertas

nossos corpos úmidos e exaustos no meio dos lençóis

nossos corpos transformados em ovos luminosos suspensos sobre a cama

nossos corpos que nos ensinam a morder, chupar, beijar e trepar

nossos corpos irremediavelmente presos dentro de uma nuvem de chei-

  ros de corpos

nossos corpos inteiramente recobertos de olhos atentos como aves de

  rapina planando milhares de metros acima do solo

nossos corpos de longos dedos que se transformam em zagaias africanas

  a serem atiradas contra o sol nascente

nossos corpos de silvos alucinados ecoando na medula dos ossos

nossos corpos incansáveis operários erguendo as catedrais da noite

nossos corpos parados na margem leste do rio da história, olhando o

  curso das suas águas lamacentas que balançam preguiçosas carre-

  gando casas, troncos e pedaços de embarcações

nossos corpos participantes de estranhas reuniões em clareiras sob a lua cheia

nossos corpos estabelecendo alianças e pactos secretos na calada da noi-

  te, sussurrando sob as cobertas formulando planos para explodir

  obeliscos e estátuas equestres, falsificar identidades

nossos corpos rabiscando muros com inscrições anunciando a próxima

  temporada de orgias

nossos corpos pronunciando as palavras sagradas, o agora, mais, põe, vem,

  mais, com a certeza messiânica de um orador agitando as massas

nossos corpos preparando um gigantesco patuá de uma magia negra das

  mais pesadas para desviar o rumo da história e acabar de vez com

  a barbárie capitalista

nossos corpos anarquistas defendendo a formação de sociedades iguali-

  tárias regidas unicamente pelo princípio do prazer

nossos corpos com suas sacolas de escorpiões famintos, luas trêmulas,

  ventos que ressecam a pele em paisagens de dunas movediças

nossos corpos cheios de reentrâncias, escadarias de pedra recobertas de

  musgo, esquinas tão cheias de mistério quanto uma cidade-fan-

  tasma invadida por um bando de bêbados altas horas da noite

nossos corpos recostando-se mansamente na beira de um lago, sentindo

  a água na temperatura da pele, deitando-se e sendo recobertos

  aos poucos pelas folhas que vão caindo das árvores ao redor

nossos corpos elípticos, cordas tensas prontas para disparar as flechas

  incendiárias do prazer

nossos corpos rolando abraçados sobre este chão de cílios vibratórios

  que recobrem a terra, esse balão luminoso que pisca na neblina

túneis de borracha cega abrem-se para receber nossos corpos

  armários em chamas rolam pelas escadarias

   um arco-íris tenta executar os passos finais de um balé

  ele tropeça e cai

  desabando sobre as encostas da Serra da Mantiqueira

  explodindo em um caleidoscópio de cores

  as montanhas racham-se

  fontes de água quente jorram contra as nuvens

   sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas

 com suas botas vermelhas

   uma vitrola distante toca In a Silent Way de Miles Davis

um montão de papel picado é jogado para o alto

  multidões rezam orações sem sentido

   um avião se transforma em gota d'água e fica suspenso no céu

os navios da noite chegam mais perto

 eles já dobram a barra do porto

suas luzes piscam

   já se ouve a música das festas nos conveses

duas mil lavadeiras

batem peças de roupa em suas tábuas

 em uma praia na margem direita do rio Araguaia

no fundo do quarto há uma porta

 ela se abre para uma escada de ferro em caracol

pela qual descemos

  para penetrar no bojo deste cometa alucinado dos nossos corpos

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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— Financiamento e realização

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