Dos Motivos
Escrevemos porque nos falta o tempo
de purgar a grande dor coletiva
e na poesia que fazemos
trazemos nossa esperança rediviva.
Fazer versos é mais que manifesto:
hoje, é luta e testemunhos.
É um cerrar de punhos
e um grito de protesto.
Cantemos, pois, com a certa convicção
de que calar é mais trágico e atroz.
Infeliz o que sabe a canção
e, no entanto, emudece a voz.
Cicatrizes
Crava-se na memória
o espinho
e a dor escorre
como sangue.
Na desesperança desencarnada
de uma terra seca de searas
pedras sobre pedras
O suor é o sonho.
As manhãs e as claras madrugadas
foram apenas festas que a noite castrou.
O espinho encravado no miolo da esperança
na sutura dos ossos
no pêndulo do nervo
na paz do sangue
na sagração dos dias
na origem do pasmo
na confluência da dor
nas raízes da terra
e na carnadura da pedra
agride nossas cicatrizes.
No eixo do tempo,
a memória.
Mas não serei eu
agreste e perdido
que há de lavar o sangue
das mãos que mataram nos porões
do tempo.
Da dor vertida no peito
feito lágrima e fel
sabem o fio da faca
e prumo da História.
Da noite, sabemos nós
que viemos do mundo dos abismos
carregando almas naufragadas
salitre nas feridas
mágoas no peito
e engasgo na garganta.
Nós, que de muito plantar
no escuro da noite
as palavras que nos marcavam
os sonhos que nos embalavam
e os mitos que nos mantinham
restamo-nos, sobreviventes,
amanhecendo cicatrizes.