DIÁLOGO COM OS MORTOS
Os mortos governam os vivos.
(Provérbio antigo)
Hoje, dia de finados, acordo
e vou ao cemitério dialogar com os mortos.
Me assento solitário
no mármore do poema,
na cova rasa da história
e considero
os mortos de outrora
e a vergonha de estar vivo agora.
Olho os mortos em torno:
há qualquer coisa estranha e dura
no vazio de seus rostos:
— é vergonha,
é a calcinada amargura
segregada na solidão em que nos choram
do fundo da sepultura.
Certamente não sabiam
que mesmo depois de mortos
uma vez mais morreriam
de vergonha e humilhação.
Vou dialogar com os mortos
e descubro
que os vivos é que estão surdos.
Vou dialogar com os mortos
e escuto
que os vivos é que estão mudos.
— Podem os mortos em seus jazigos
emprestar sua voz aos vivos?
— Será preciso um comício
de cinza, círios e ossos
para resgatar
— os vivos mortos?
Mal formulo esse juízo, percebo
que me equivoco;
— são os mortos que me assomam à porta
sacudindo os ossos,
brandindo vozes
desenterrando em mim
— meus insepultos remorsos.
— O que é isso? dança macabra?
festa da bruxa? abracadabra?
— O que fazem na praça soltos
os mortos de nossa história?
— O que fazem expostos, fora
da cova da memória?
Que dia torto, esquisito,
onde o morto é que está vivo
chorando na praça, às claras,
a nossa escura desgraça.
— É carnaval? Funeral?
Na necrópole invertida
chacoalhando a morte e a vida
surgem os blocos do "aqui-jaz":
— já vêm quase despidos
os "Unidos de Carajás",
— e dessangra na avenida
o bloco atômico dos sujos
dos "Poluídos de Angra",
— surgem os "Famintos Herdeiros
do Milagre Brasileiro",
— dançando o maracatu
os "Afogados de Itaipu",
— horrendos de dar insônia
"Os Vampiros da Amazônia",
— dois blocos cheios de si,
capengas como Saci:
"Lenhadores da Capemi",
"Tenentes de Tucuruí",
— fantasia premiada:
"Virgem da Serra Pelada",
— alegoria aclamada:
"A Mulata Endividada",
— fechando o cortejo, enfim,
as três irmãs bailarinas:
Coroa, Brastel, Delfin.
No mundo antigo
era em fevereiro, mês das saturnais romanas
que os mortos vinham às ruas
numa orgia eterna e humana.
Era também primavera
— festa da fecundação,
mesclava-se a morte à vida,
vivos e mortos viviam
em cósmica comunhão.
Embora Romano, não vivo em Roma.
Este é o Brasil. É novembro.
É pungente e é triste.
Chove desesperança
nesse avesso carnaval.
Os corpos estão aflitos,
caiados de branco, sem sol,
e o povo acompanha vivo
o seu próprio funeral.
Não quero ser coveiro, bruxo,
um Velho do Restelo, resmungando
sobre a passada glória. Queria,
como Píndaro, olímpico gravar
em ouro eterno a clara história.
Mas os de agora não ajudam.
São pífios, perfunctórios,
seus gestos não inspiram odes,
suas obras se queimam escuras
no fogo-fátuo das horas.
Diziam os sábios antigos:
— os mortos governam os vivos.
Mas na ironia da frase
descubro um outro sentido
ao contemplar meu país
num desgoverno aflitivo:
os que deviam reinar
estão sonâmbulos, perdidos
em seus palácios sombrios,
em seus esquifes de vidro
olhando ao longe a nação.
Não percebem que estão mortos.
Começam a já mal-cheirar
e, no entanto, se recusam
a se deitar
— no caixão.