Diálogo com os mortos

Affonso Romano de Sant'Anna

DIÁLOGO COM OS MORTOS

 

Os mortos governam os vivos.

 (Provérbio antigo)

 

Hoje, dia de finados, acordo

e vou ao cemitério dialogar com os mortos.

 

Me assento solitário

no mármore do poema,

na cova rasa da história

e considero

 os mortos de outrora

e a vergonha de estar vivo agora.

 

Olho os mortos em torno:

há qualquer coisa estranha e dura

no vazio de seus rostos:

— é vergonha,

é a calcinada amargura

segregada na solidão em que nos choram

do fundo da sepultura.

 

Certamente não sabiam

que mesmo depois de mortos

uma vez mais morreriam

de vergonha e humilhação.

 

Vou dialogar com os mortos

e descubro

que os vivos é que estão surdos.

Vou dialogar com os mortos

e escuto

que os vivos é que estão mudos.

 

— Podem os mortos em seus jazigos

emprestar sua voz aos vivos?

— Será preciso um comício

de cinza, círios e ossos

para resgatar

    — os vivos mortos?

Mal formulo esse juízo, percebo

que me equivoco;

 

 — são os mortos que me assomam à porta

 sacudindo os ossos,

brandindo vozes

desenterrando em mim

— meus insepultos remorsos.

 

— O que é isso? dança macabra?

festa da bruxa? abracadabra?

 

— O que fazem na praça soltos

os mortos de nossa história?

 

— O que fazem expostos, fora

da cova da memória?

 

Que dia torto, esquisito,

onde o morto é que está vivo

chorando na praça, às claras,

a nossa escura desgraça.

— É carnaval? Funeral?

 

Na necrópole invertida

chacoalhando a morte e a vida

surgem os blocos do "aqui-jaz":

  — já vêm quase despidos

  os "Unidos de Carajás",

 

  — e dessangra na avenida

  o bloco atômico dos sujos

  dos "Poluídos de Angra",

 

  — surgem os "Famintos Herdeiros

  do Milagre Brasileiro",

 

  — dançando o maracatu

  os "Afogados de Itaipu",

 

  — horrendos de dar insônia

  "Os Vampiros da Amazônia",

 

  — dois blocos cheios de si,

  capengas como Saci:

  "Lenhadores da Capemi",

  "Tenentes de Tucuruí",

 

  — fantasia premiada:

  "Virgem da Serra Pelada",

 

  — alegoria aclamada:

  "A Mulata Endividada",

 

  — fechando o cortejo, enfim,

  as três irmãs bailarinas:

  Coroa, Brastel, Delfin.

 

No mundo antigo

era em fevereiro, mês das saturnais romanas

que os mortos vinham às ruas

numa orgia eterna e humana.

Era também primavera

— festa da fecundação,

mesclava-se a morte à vida,

vivos e mortos viviam

em cósmica comunhão.

 

Embora Romano, não vivo em Roma.

Este é o Brasil. É novembro.

É pungente e é triste.

Chove desesperança

nesse avesso carnaval.

 

Os corpos estão aflitos,

caiados de branco, sem sol,

e o povo acompanha vivo

o seu próprio funeral.

 

Não quero ser coveiro, bruxo,

um Velho do Restelo, resmungando

sobre a passada glória. Queria,

como Píndaro, olímpico gravar

em ouro eterno a clara história.

 

Mas os de agora não ajudam.

São pífios, perfunctórios,

seus gestos não inspiram odes,

suas obras se queimam escuras

no fogo-fátuo das horas.

 

Diziam os sábios antigos:

— os mortos governam os vivos.

Mas na ironia da frase

descubro um outro sentido

ao contemplar meu país

num desgoverno aflitivo:

 

  os que deviam reinar

  estão sonâmbulos, perdidos

  em seus palácios sombrios,

  em seus esquifes de vidro

  olhando ao longe a nação.

  Não percebem que estão mortos.

  Começam a já mal-cheirar

  e, no entanto, se recusam

  a se deitar

    — no caixão.

 

 

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