Dia da Pátria
Hoje é o dia da pátria, nossos mortos
não sabem mas hoje é dia da pátria
é hora de tocar os sinos, limpar as forças
com Pinho-Sol, guardar os cadáveres cuidadosamente
com naftalina, lavar os trapos encardidos da bandeira,
encerar o cânhamo.
(Assim agem os assassinos que têm um cargo oficial,
enquanto todos dormem).
Hoje é o dia da pátria, dia de enfeitar
a fachada dos edifícios com as melhores estatísticas
fazer soar os melhores discursos
ejacular civicamente em cima das digníssimas esposas.
Tudo é permitido, porque hoje é o dia da pátria.
Todas as mentiras podem ser ditas em nome do povo
Não haverá torturas hoje, porque é o dia da pátria
cada gota de suor, cada gosto de sangue
cada ato de torpeza ou grito arrancado na porrada
deverá ser esquecido ou registrado em ata
porque hoje é um dia de festa
e todo proleta que tiver um fraque
poderá ir ao grande baile da Ópera.
Haverá uma parada de aleijados
um DOI/CODI de azulejos em cada esquina
a inauguração de um canil para dissidentes
um concurso público para a nomeação de novos caguetes
o cacete não será baixado até meia-noite
porque hoje é um dia de graça
haverá um Te-Deum solene na catedral
e no ginásio militar
será eleita a Miss dos descontentes.
Um corvo sinistro de nacionalidade britânica
cagará na cabeça do sentinela
porque hoje é dia da pátria
um general reformado enfiará a espada na bunda
cometendo um harakiri marcial
porque hoje é o dia da pátria
um tecnocrata cretino terá cólica e remorsos
porque hoje é dia da pátria
O ideólogo oficial ladrará na conferência
porque hoje é o dia da pátria
o empresário dará uma esmola e construirá uma escola
porque hoje é o dia da pátria
um filantropo cristão comerá a filha do ditador
porque hoje é o dia do jubileu de prata
os funcionários anistiados no tribunal
mesmo amargurados, inaugurarão um busto memorável
porque hoje é o dia da placa.
Um acadêmico de direita irá pela primeira vez
direto ao assunto, para o susto dos presentes
o orador fará um discurso no púlpito do palácio
o escultor sem cultura o esculpirá
- palavra por palavra -
em puro mármore de Carrara
e a melhor hipérbole
será bolinada impunemente
por poetas incapazes
de fazer as pazes com a última flor do Láscio.
À noite,
depois dos fogos de artifício
restarão sobre a relva
os esqueletos dos piqueniques.
Do alto dos prédios embandeirados
os sobreviventes verão as fogueiras crepitando
em todas as avenidas desertas
fervorosos debates
e remadores musculosos de sunga e capacete nazista
singrando em seus botes
os lagos coagulados.
Policiais amadores farão sua ronda na superfície
enquanto torturadores de alta patente
tentarão patrulhar o fundo denso de cada coisa desapercebida(2)
vestindo seus escafandros e levando na coleira
barracudas vorazes amestradas.
Cumprirão sua tarefa de torturar os moribundos
se certificarão que os mortos
ficarão mortos para sempre,
as viúvas sem o calor de seus corpos desaparecidos
e a certidão de seus óbitos indesejados.
Assim, nessa data magna,
a pátria fez por merecer seus filhos
e o Dia do Juízo não foi suficiente
para julgar todos os culpados.