Descrição do engano
Dragão é bicho que não existe.
Põe fogo (inexistente)
Pelas ventas (imaginárias)
A descrição é tão mais nítida
quanto mais mente.
Engana
a sua natural condição
nenhuma,
com riqueza
de detalhes.
Diverge do fato: muito menos complicado
este:
um bloco, um torso, um réptil.
O fato é o real-deposto
sem artimanha.
Como um lagarto ao sol
não tem pressa,
é de pedra a sua espera:
gasta pouco, menos que nada
em um século.
O dragão (pelas escamas) confina com lagarto
(pela cauda) com serpente
(pelas asas) com pássaro.
Os três separados: fatos;
juntos conjugam: a mentira (não sabem)
A mentira se faz coletiva: acéfala.
Muitas cabeças? Cabeça nenhuma.
Qual o seu dono?
Quem o leva a caminhar pelas patas
(como se fosse?)
traz-lhe comida, solta-o da jaula,
o pássaro não mais se lembra
que o sustentou no espaço,
a serpente, que lhe deu
majestade —— dando-lhe a cauda.
O lagarto, que lhe cobriu
a impostura com o próprio casco.
(Cada escama um detalhe
do engodo)
O fogo que solta pelas ventas
como o do homem que engole fogo
no espetáculo —— não queima.
Acende a imaginação,
fá-la clara e receptiva para o embuste.
No circo, mesmo a morte do trapezista
no solo —— continua o ato:
(superlativo de si mesmo)
"O Salto Mortal Mortífero"
A Máscara e o Músculo Cardíaco —— um só enlace.
Aos vários nomes:
"Tradição", "Pátria", "Dever", "Deus", "Raça"
o dragão acode como sendo o seu.
Responde com as inúmeras
partes do seu corpo: juntas, articulação, unhas,
anda na direção do homem
subjuga pela nitidez da imagem,
há palavras que são faíscas: como o fogo que vomita.
Há palavras que são faíscas: como o fogo que vomita.
Comentário do pesquisador
Em si mesmo, o poema não contém elementos que apontem expressis verbis para a ditadura. Mas a data de publicação – o livro é de 1974 – torna inevitável a articulação do(s) texto(s) com aquele contexto histórico. Palavras da autora na sua "Nota introdutória" ao volume: "A parte ficcional da obra [os contos e poemas do livro] foi escrita em diferentes espaços de tempo e organizada de uma perspectiva, por assim dizer, sobreficcional, que atuou no material existente, modificando-o. Tendo como referência um critério de valor anterior à organização do livro, a autora teria suprimido alguns trechos. Contudo, a "sobreficção" – assim lhe parece – tornou relevantes contos e poemas que não subsistiriam isolados" (p. 8).