Depoimento

Affonso Romano de Sant'Anna

DEPOIMENTO

   para Bolivar Lamounier

Ano de 1966.

Eu, Affonso Romano de Sant'Anna,

aos moldes de Villon, meu mestre,

resolvo:

sem ter nada que ocultar,

versos que temer

ou desculpas a quem dar;

já no meio da vida, e no mundo

demais no meio para calar,

conhecedor de algumas terras,

de alguns corpos agrimensor,

sem tocar outro instrumento

que seu corpo e seu amor,

hoje longe da pátria

aos dezesseis — pregador,

hoje — profissão definida,

ontem — recados & marmitas,

hoje — sem dívidas e aluguéis,

ontem — aturdido com a festa

e hoje — demais na vida.

 

Um tipo a que chamo: caminhante

e a outros surge: deambulante,

mas a que chamo móvel, duplo, resultante;

sem queda pra matemática,

pois soma mais se os subs o traem;

um tipo, vamos dizer, comum,

e que nada mais pretende

que de si mesmo ser retrato e semelhante.

 

Neste ano de 66,

ano besta, não bissexto,

apocalíptico e fatídico,

 

em que artefatos amarelos explodem no mar da China

e meu povo curva a cabeça e se aniquila,

 

em que minha vida interna floresce

e no Vietnã arroz e carne fenecem,

 

em que em mim, violenta, a poesia sobrevém

e os distúrbios nos subúrbios negros recrudescem,

 

em que um amor mais belo e novo se acrescenta

tão logo um antigo e escasso se esvanece,

 

em que eu, de carro novo transito e rejubilo

e alguns amigos nas prisões padecem,

 

em que nos savings acounts tenho money

e pelos nordestes perdura a mesma fome.

 

Neste ano de 66,

esperado, implorado, fabricado, suportado,

neste ano

colho as vacas gordas que meu pai

ano após ano pelos cultos de vigília

esperava que viessem.

Me lembro que em tais natais

eu nada tinha, senão muito que aprender

e muito que aceitar;

e nada tendo, eu aprendia com meu pai

de qualquer jeito

— a graças dar.

 

Sei

que desta safra outros só colhem palha

ou que muitos encolhem os ossos e a morte

dos seus recolhem.

Sei

que dentro da mesma estória

irmãos mais velhos

vendem o mais novo como escória.

Mas sei

que a seca não tarda

e pra cada irmão que vendam

são sete anos de praga.

 

Não sei por quantos anos

este ano vai durar,

em que época terei que ler meu verso

ao reverso

e do que é lugar dos outros

farei meu ocupar.

Mas sou pronto pro adverso

e do que há por suportar.

Porque um ano de fausto

não apaga os de penar.

 

Este ano não me ilude

não me compra, nem farisaíza.

Posso olhá-lo sem me curvar

como quem olha o que não é seu,

como o samaritano

o trato acolhedor que lhe oferecem

o publicano e o fariseu.

 

Ano de 66

— besta de 10 chifres

se ostentando sem véus:

te corto nos teus excessos

e retenho só o que é meu.

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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— Financiamento e realização

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