CRÔNICA DOS ANOS 60
para Roberto Drummond
Em 1966
na Guatemala
pela primeira vez
vi cartazes de: "procuram-se guerrilheiros".
Caliças de astecas pobres.
desmaiadas mantas e peles,
pirâmide de pedra ao sol
e o chofer falando de Índio Peredo
e que o povo
afinal
não o seguiria.
Eu seguia para Antiqua
a ver seus dois vulcões, a destruída igreja
e o que o homem planta e colhe
das lavas frias dos sermões.
Só um ano mais tarde
— Guevara
nas matas ralas da Bolívia
morreria
cumprindo a sina e assassina profecia.
No Brasil
— país de vulcões brancos
e negras lavas contidas,
guerrilheiros não derramavam ainda suas mortes
— nas encostas dos jornais.
Estavam pelos bares, nos comícios,
nos divãs dos analistas
tentando um novo casamento
— e a ficção.
Outros, no entanto, sorrateiros
se esvaneciam do quadro-negro das salas,
se ausentavam dos diagramados jornais,
se escafediam
da ordem unida dos quartéis,
da saliva caseira das mulheres
e das dívidas mensais.
Havia quem se apartasse dos partidos
burgueses de massa falida
e decretasse a ordem pessoal da rebeldia.
Eu
ia e
vinha
entre um país e outro, entre
uma universidade e outra, entre
uma mulher e outra, sem achar
a pérola da ostra
sem saber onde
o país, como o poema, qual o problema,
que praga neurótica e histórica
nos corrói desde sempre
— a colheita da paz e do maiz.
E enquanto amarrotavam minha alma
na mala-sorte da alfândega
eu ia amando e retornando
e desamando e me partindo
e desarmado revoltando.
Embaralhado à multidão chorando gás e emoção,
quase perdia a vida e o avião.
Ao leste do inverso Éden
era latente,
tropical,
dilacerante
— o meu Vietnã.
Escrevia e lia o que podia
na minha língua estrangeira,
marchava e amava onde deixavam:
em Los Angeles,
Carmel,
São Francisco,
eu, ex-negro brasileiro, ao lado de Luther King
apazcentado no sit-in,
rea(r)mado no love-in
transcendental, pousando aluzcinado em Big Sur,
Sunset Boulevard.
ao azar,
ou então arrebatado ao deserto de Mojave e Hot Spring,
ou no vulcão Ubehebe a conhecer o fundo orgasmo e as lavas
da tarde em que as paixões adolescentes em nossas bocas irrompiam.
É para lá que eu ia
já que em Cananéia e Doxá,
em Campo Grande e Bien Hoa,
no Araguaia e Kan Ton,
morriam os mais afoitos, perdiam-se
os incautos, e manchavam-se a carne e o arroz.
Eu desaprendendo o país
e o ensinando lá fora,
e os alunos me indagando:
e eu me explicando. Explicando
e eles pouco entendendo. Então,
voltava à casa e lia pesados tomos,
pedia auxílio nas cartas, mas as perguntas
eram peixes perdidos ou gaivotas mortas
— pois não desovavam respostas.
Era maio.
Mês literário e suburbano
com virgens, missas e flores,
que de repente desata-se em Sorbonnes
numa ilusão libertária.
E as canções
me interpretando e os cabelos e barbas
como algas em minha face me afogando
— alguma coisa já estava acontecendo
e você já não sabia o quê, Mr. Jones.
Antigamente se ia a Meca
e a Aparecida do Norte. Fui
a Greenwich Village,
Heigh and Asbury Street,
Piccadily Circus
— e nowhere.
E as canções me encaminhando, e as visões
se clareando, e os corações
se disparando, e a enxada
em vez da espada, e a viola
enluarada, e a alma encurralada
soltando o ambíguo berro:
— que tudo mais vá pro inferno.
Viva Ipanema sacana,
viva Iracema na cama,
meu reino tropical
por uma real banana,
minha central república cítrica enlatada
pela revolução cubana!
Ah, minha tropical escritura desestruturada em
[ditaduras e prostrado na tortura onde amarelos submarinos
[se afogam em paus-de-arara verdes com azuis menestréis
[cantando dores dominicanas e pedras sobre pedras sendo
[derribadas das babilônias pelos Rolling Stones embalando
[babies nazarenos Beatles nas vitrinas de incenso e jeans
[queimando nas butiques mendigando o artesanato grupal e
[seminando o sexo rural no mural pop ocidental faça pipi
[num poster faça o amor o rock e a guerra não mata só Jimmy
[Hendrix heroína é quem dá e quem tem fé vai ao Oriente ou
[puxa o Hair pelos cabelos e fuma à luz da superestrela
AME-O OU DEIXE-O
Deixei-o várias vezes e amei-o
com ódio ao meio.
Breve nos foram os anos 60
e ainda mais breve para os que se foram
pulando das festas ou deixando flores na cova ao pé do morro.
— Estão frias as carnes e lavas?
— Somos uma geração com ereção política apagada?
— Em que cinzas arderão os sábios os seus provérbios e orgasmo?
Leves para alguns, eternos para outros
assim nos foram os anos 60.
E como diz o salmista:
— se alguém chega aos 70 ou 80
só encontra a canseira e o enfado.