CRISTO
"Não cuideis que vim trazer a paz à terra;
não vim trazer paz, mas espada."
Jesus Cristo (Mateus, 10.34)
Cristo tinha uma coroa de espinhos
sobre a cabeça feito um pêndulo,
torniquete que lhe afundava
a fronte contemplativa,
enquanto rios de sangue escorriam
fertilizando os caminhos
de pedras lisas de se pisar,
itinerário do Calvário
onde seria levado.
Cristo tinha uma cruz
sobre os ombros em escoriações,
a silhueta alquebrada,
provação e sofrimento,
arrastando o peso
do mundo que lhe caíra
sobre os ombros como uma angústia.
Cristo, quase genuflexo
diante dos algozes,
resistia aos chicotes
que abriam profundos cortes,
dezenas de mãos a açoitar
seu corpo esvaído em sangue,
padecimento
e pavor.
Cristo tinha as mãos
vazadas pelos ferros
cravados na alma
em crucificação aos céus
que caíram sobre os mortais
na dor que cobriu as pálpebras
de silêncio
e mistério
pelos séculos de escuridão
e provação infames.
Cristo tinha dois miseráveis
ao lado no padecimento
e enfrentou o regime,
que lhe condenara pelo crime
da luta pelo direito à vida.
Cristo tinha motivos
para assustar os poderosos,
senhores que desde então
montaram farsas
para enganar os inocentes,
manobrar as massas
e explorar os incautos.
Cristo trazia um cajado
nas mãos em Jerusalém,
quando afugentou os vendilhões
que já naquela época
falavam em seu nome,
construindo fortunas
e conspirando para que fosse
levado à morte,
imagem que ficaria
pelos tempos da eternidade.
Cristo tinha uma coragem
infinita para enfrentar
os assassinos armados,
lutar pelos mais fracos,
os desgraçados da sorte,
os miseráveis famintos,
os à margem da lei,
e dizer em voz alta:
— A César o que é de César…
Cristo tinha nos pés
o único meio de locomoção,
milhares de passos
caminhados sobre a terra,
para libertar os povos
dos senhores do Império
que não tardaram muito
em mudar de lado,
como um camaleão muda de cor,
e pelos séculos de exploração
passaram também a falar
em nome daquele
que mataram.
Cristo tinha na palavra
a arma para aniquilar
os temerosos do regime,
amedrontar os generais
em sermões pelas montanhas
repletas de perseguidos
que seguiam seus passos.
Cristo tinha o poder
de mover pedras,
ressuscitar mortos,
acalentar oprimidos
pelos esconsos das trevas
daqueles tempos de antanho,
levando a todos a acreditar
na possibilidade da cura…
Cristo foi retirado da cruz,
levado para o sepulcro
e perdoou os algozes,
senhores donos do mundo.
Cristo seguiu em frente
na peregrinação libertária,
caminhando dentro dos homens
na clandestinidade dos foragidos,
deixando em nós a lembrança
de uma lição de lutas
que os milênios não conseguiram
apagar da memória dos homens.
Cristo tinha em sua aura
de magnitude
e luz
a determinação dos que não
se conformam com as injustiças
em seu tempo diante do mundo.
Cristo vive na alma
dos que enfrentam a morte
sem temer os tiranos,
sem temer os federais,
sem temer os assassinos.
Cristo, creio,
se tivesse um mimeógrafo
também imprimiria poemas
para os séculos lerem um dia.
Cristo, creio,
era um poeta
que chorava pelas dores
que não eram inteiramente suas.
Rio de Janeiro, 13.5.72