CONVERSA COM PABLO NERUDA
«Bandidos com aviões e com mouros,
bandidos com sortilhas e duquesas,
bandidos com frades e duquesas,
bandidos com frades negros bendizendo,
vinham pelo céu para matar crianças,
e pela rua o sangue das crianças
corria simplesmente, como sangue de crianças»
Pablo Neruda
Pablo,
nem de sangue posso falar.
Não posso encher minhas mãos de sangue
e jogar na cara do governo,
nem mostrar minhas mãos sujas de sangue
ao povo,
porque toquei os cadáveres de um regime.
As crianças morrem
secas ao sol,
podres de vermes,
esqueléticas de fome
numa cama de varas
ou de calçada.
Não posso mostrar o sangue
porque o sangue
— nem o sangue —
existe aqui.
Eles souberam jogar a culpa de lado,
não matam a tiros...
Desviam a atenção,
mas assim mesmo vemos!
Pablo,
não posso pedir recordar
nem fazer perguntas ao passado.
Aqui não houve passado
e não há tempo para recordações.
Aqui não se chega a construir um homem,
não há tempo para isso:
a morte e a fome
produzem covas e bocas suplicantes.
Os que morrem,
são homens os que morrem
porque não houve mais tempo
para se transformarem
em simples animais esfomeados!
Qual o futuro das crianças
espalhadas nos desertos
abandonadas
nas calçadas?
E o do homem irrealizado?
Pablo
aqui não se mata a tiro...
Quase não se mata assim...
Antes se matasse,
mas são assassinos frios
que matam à fome
e transformam os que sobram em animais domésticos.
Os cadáveres são lucros!
Aqui o terço enforca
e a hóstia é veneno!
Dos projetos de homem,
a maioria fracassa!
E eu, Pablo,
simples poeta atrofiado
e estudante necessitado,
nada tenho.
Nem voz bastante para gritar, xingar,
instigar,
mostrar as misérias,
a falsidade,
o fanatismo
e os criminosos
e os vendidos.
Aqui vacinaram
com doença o povo
e rotularam os amigos e humanos
de inimigos e sanguinários.
O que posso fazer faço,
Pablo.
Cumprirei minha parcela!
Vou tirando sons selvagens
do violão que não aprendi a tocar.
Não tenho nada de meu
para comover ninguém.
Tenho angústia
e ódio de ter que ser diplomata
e mostrar os dentes
para quem mata meu povo.
Com que dor aguento na cara
a injustiça
e vivo com injustos.
Pablo,
não aguento mais ouvir bater sino!
Pablo,
são frios, frios, frios,
muito frios
os assassinos!
(1965)