Cidade Maravilhosa
A cidade se abre como um jornal:
flash flã flagrante
na folha que o vento leva
no grito impresso que voa
na voz
com a manchete:
LUTE NO AR
No ar
ou no exíguo espaço
que nos resta
no chão
das casas
das caixas de morar
nos ônibus superlotados
nos estádios cheios
o homem que
—— todo o dia ——
veste a camisa da estrela solitária
e desaparece
—— para sempre ——
luta
contra o esquecimento.
Como um jornal que escreve
em cada página
a crise e o crime de toda hora
como um jornal que embrulha
o que
diariamente
esquecemos
como um jornal
como os espelhos perplexos
do Parque de Diversões
se fazem os quadros em flagrante
de Gerchman.
Ali estão todos
estamos nós
em pré-estréia
a sós
na beira do mundo
com todas as nossas caras:
a miss o kiss elétrico
o kitsch o clichê
o beijo borrado de Monalou
me alcança
no banco de trás
a Moreninha
me enlaça
na janela furta-cor
que pisca,
por de trás da paramount
o amor se acende:
Boa Noite
Lindonéia.
Ali estão todos
na primeira página quebrada
dos espelhos:
aqui, perdido, me acho
em cada qual
me vejo
na multidão espatifada.
Ali encontro a linha
o começo do desenho
o rascunho do meu corpo
de carvão
superposto
na paisagem amarrotada
da cidade.
Aqui estão os rótulos
rasgados do meu rosto
as máscaras
as marcas
as letras do meu nome
com todos os erres
com todos os erros
em garranchos
pichados no cimento
nos cartazes
e nas caligrafias de néon:
Motel de Mel Não Há Vagas
Os Desaparecidos
Homens Trabalhando
Na frente de todos
O Rei do Mau Gosto
usa o seu rosto
A Stripper sem Script
se incendeia
sob o sol do Mangue
Assegure Sua Fartura
no Carnê Futuro
de Baby Doll
Aqui estamos nós
enfim
João e Maria
feitos um para o outro
no acaso das calçadas:
neste banco nos beijamos
neste jardim nos devoramos
nesta rua nos deixaram
joão
e maria
nos perdemos
com a roupa do corpo
com a casa nas costas
na floresta
dos dias
(índios) e (indigentes)
atravessando as veredas da avenida
sob a paixão do sol.
Comentário do pesquisador
No livro "À mão livre" (de título bem emblemático do ponto de vista dos Anos de Chumbo), a seção "Cidade maravilhosa" (de título irônico, pois não são revelados diversos problemas citadinos e nacionais) possui um único poema, cujo primeiro verso é "[A cidade se abre como um jornal:]". "LUTE NO AR", convoca a manchete; os contrastes econômicos são, por vezes, gritantes nos versos; "a crise e o crime de toda hora" sinalizam a presença de violência e de pobreza; feito no "Poema sujo" de Gullar, é difícil dizer em quantas velocidades diferentes se move a cidade maravilhosa a cada instante.