CARTA A UM VELHO POETA

Nem é preciso esforço para achar um segredo,

vivemos um momento de pasmo coletivo

e as ruas entupidas estão cheias de enigmas que pedem resposta.

Alguns morrem de fome, outros de amor.

Há tipos delicados que se recolhem no porão de um museu

ou saem em busca de objetos perdidos na infância,

sujeitos casmurros fazem careta ao espelho,

os adolescentes se emplumam, as vítimas se deitam na palha,

os sábios plastificam nossos órgãos

e, para não morrer solitário, um crítico se atira do vigésimo andar.

Caem chuvas de sangue na terra,

cresce em nossas calvas uma brecha de pus.

Em meio às efemérides abre-se um leito de cinzas

e as afeições mais ternas, entraves à política, morrem.

Cântaros, cofres, capitéis,

algumas tábuas de lei vitrificadas no tempo,

certos escrúpulos sinceros, certos valores subjetivos,

o narcótico e o jazz nos reconfortam,

mas aquele que hesita em confessar seus crimes

e nem sequer ousa balbuciar seu nome

ante um mundo que clama por definições cotidianas e práticas

é, convenhamos, um homem marcado,

baixam-lhe nuvens de terror na face

quando, só e canhestro, ele povoa uma ilha.

Pretendemos uma opção lírica,

recomendamos aos amigos mais tristes que criassem seus monstros em gaiolas de prata

onde o ato de alimentá-los fosse uma simples rotina,

ouvimos o gemido da seiva, debruçamos num tanque

e enquanto sonhávamos conquistas a fuligem e as plantas obscureciam os morros.

As horas passaram, as unhas cresceram,

figuras de marfim começaram a depender de um sopro nosso,

o peito arrebentou-se de amor uma dezena de vezes.

Um belo dia a fronte amanheceu orvalhada

e foi aí que descobrimos a poeira de vários continentes

intrometida na sola dos sapatos cambaios.

Hoje estamos nus e descalços ante a máquina esquiva,

apenas suspeitamos que uma luz se aproxima pelos trilhos da noite.