Carnaval em Colônia [parte do poema "A Catedral de Colônia"]

Affonso Romano de Sant'Anna

CARNAVAL EM COLÔNIA

 

A Catedral de Colônia

é um circo da Idade Média,

Commedia dell'Arte em mim,

o que restou de Pierrô

e o enganador Arlequim.

A Catedral de Colônia

é o advento de Pã,

é Dioniso em vez de Cristo,

carnaval, insânia, insônia

na desestória alemã.

 

Eu deveria era me abrir de vez

     e deixar assomar

     no espaço da catedral

     a autêntica Roma do Norte,

     com aquedutos do sexo

     e as bebedeiras de Baco.

Olho para o lado do Museu Romano e vejo Dioniso

que sai dos cacos do mosaico e restaura a orgia

começada na alcova da mãe dos Gracos.

 

   Lá vem Cláudio e Júlio Agripa

   descendo a Hohestrasse

   e na Schildergasse faz compras Júlio César.

Cleópatra

veste peles de onças brasileiras

   no Hansen

e Brutus compra frios no Kaufhof.

 

Eu sei que eles são nobres e eu sou bárbaro,

eu sei que eles são muitos e eu sou torto,

eu sei que eles estão vivos

e eu é que estou morto diante de seus sarcófagos.

 

   Quem é a princesa que ali entre de blue jeans? quem

   o duque de kodak diante da camponesa? quem

   a marquesa que usa avon nos supercílios? quem

   o príncipe de sacolas surrupiando postais? quem

   o duque em pé bebendo coca-cola? quem

   o arcebispo que abocanha o sanduíche? quem

   o abade e sua salsicha?

 

— Que carnaval é esse no adro profano-e-sacro?

onde o hippie cardeal turista

beija a freira namorada no portal,

enquanto a urina das cervejas escorre sob as mesas

por underground canais?

 

Pouco adiante, a pornoshop: até o pecado, enfim,

foi liberado nesse reino

e o orgasmo solitário tem máquinas de borracha

e o prazer tem seu salário.

E se a Igreja tem dois, três Papas,

os infiéis já vendem bulas e maconhas em suas portas.

Julgaria estar na Idade Média

não fossem os jornais expostos na estação,

a greve, o terrorismo e a inflação.

 

    Nesta praça tudo é possível.

E aqui a criança e o adulto refazem

  insanamente

o eterno poema-igreja.

  E já pareço Colombo

  viajando pelo avesso,

  indo a leste pelo oeste,

  chegando à América surpreso.

  Talvez devesse confessar

  que ao invés do incauto marinheiro

  sou explorador pedestre

Marco Pólo

  que regressa das muralhas da China

  com os olhos cheios de inventos

  não para as cortes de Veneza,

  mas para os morros de Minas.

 

— O que é isto? pergunta o alemão

em sua terra perdido

e já convertido em turista.

— É isto história, insônia

ou memória do Brasil-Colônia?

 

E eis que ouço qualquer coisa

entre remorso e samba-enredo:

é a liberdade tardia

tardando desde o começo.

 

Lá vem Chico Rei, escravo ousado

puxando seu congado, lá vem Chica da Silva

brincando de rainha

e num barco de papel

num lago de Diamantina

penteando a carapinha.

 

E vêm índios e jesuítas

com o Marquês de Pombal

iluminando o universo

do meu secular quintal

dançando o maracatu,

onde não podem faltar

as bandas de pau e corda

e os pífaros de Caruaru.

 

Lá vem a ala das baianas tropicalistas,

dos ingênuos marxistas, das raposas populistas,

dos tenentes udenistas, travestidos de golpistas,

guerrilheiros de Ipanema, retaguarda vanguardista,

   batendo tarol e surdo

   seguidos de brasilianistas

— tomando nota de tudo.

 

Aplausos caem da arquibancada:

são investidores estrangeiros

   turistas

   economistas

que aplaudem interesseiros

o samba atravessado

— do milagre brasileiro.

 

E o povo-marginal, com tal arrebatamento,

mal se contém atrás

— do cordão do isolamento.

 

Que arqueologia fantástica!

que carnaval de datas!

que anacronia de máscaras!

 

Esta, a plaza mayor da história,

o grande sertão europeu,

a pororoca dos tempos

e a festa tola dos reis.

 

E neste poema-avenida,

que já assumiu forma vária:

já foi templo, já foi rio,

já foi livro, foi museu,

foi infância e foi batalha,

não estranha que essa igreja

convertida em palco e praça

agora assista ao desfile

vestida de Candelária.

E esbaforida

   aturdida

irrompe na avenida

a Escola dos Desunidos da História.

 

A alegoria é de Picasso,

de Da Vinci a fantasia,

o enredo exorbitante

é de Karl Marx e Dante.

Rasputin pensa que é Papa,

Maquiavel, arlequim.

Quem é que puxa a escola

Será Zapata ou Zumbi?

Antonieta — a Rainha,

é par constante de Spartacus.

Joana D'Arc com a bandeira

vem na ala das baianas.

Rabelais é o mestre-salas.

Os guerreiros de Alexandre

já rebolam sem recalque

e os elefantes de Aníbal

atravessam o samba e os Alpes

tirando aplausos do gelo.

Franco aparece em cena

travestido em corno manso

e Salazar — outro astro

beija a testa de Fidel

fingindo que é Inês de Castro.

Nijinski comanda o frevo,

Stravinski o berimbau,

na bateria Beethoven

no repenique vem Bach

fazendo o povo sambar.

 

— Que orgia é essa?

    — É assim o carnaval em Colônia?

— Existe um tal europeu arrebatamento?

Ou é apenas abaixo do Equador que todo santo é pecador?

— Que pode um europeu pensar

de um cronista que confunde seu país,

que não passa, em Paris, de um persa,

ou um Santos Dummont aéreo

desastrando a Torre Eiffel

  — com seu frágil 14-Bis?

 

E já ao fundo se esvaem

o bloco dos exilados, o grêmio recreativo

dos políticos cassados, o rancho

dos torturadores e outros blocos de sujos

cruzando o canal das manchas,

chegando do outro lado, exorcizando no presente samba

o futuro sempre ausente

    — e o recalcado passado.

 

  E  o espetáculo se encerra

  da forma como começa:

  senhores de chapéu-coco,

  bengala, luvas, sorrisos,

  saúdam o povo e turistas

  e vão varrendo na gente

  confetes e cicatrizes.

 

  Parece, foi sempre assim:

  o aplauso, a glória, a euforia

  e depois o anonimato

  na vala comum dos dias.

  Primeiro o ideal, a luta,

  depois o luto e o exílio.

 

  Um dia, o perdão torto, a anistia,

  onde o criminoso perdoa a vítima,

  mas não engana o que está morto.

 

Perder

   é carregar no corpo

   a história da morte em vida.

  Ganhar

   é, no trono, estar faminto

   sobre os detritos da glória.

 

No futuro

   abrindo baús velhos e mágoas

   alguns se perguntarão

   movendo as cinzas do medo:

   — quem era o porta-estandarte?

   e qual era o samba-enredo?

   Arqueólogos

   virão desenterrando da avenida

   odaliscas e utopias,

   piratas e guerrilhas,

   havaianas e manifestos,

   toureiros e caveiras

   e por mais que recomponham

   os cacos e detritos

   reinterpretando os mitos,

   não refarão jamais os sonhos de Dionísio e Baco

   nos mosaicos de Pompéia destruída.

 

 

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