CARNAVAL EM COLÔNIA
A Catedral de Colônia
é um circo da Idade Média,
Commedia dell'Arte em mim,
o que restou de Pierrô
e o enganador Arlequim.
A Catedral de Colônia
é o advento de Pã,
é Dioniso em vez de Cristo,
carnaval, insânia, insônia
na desestória alemã.
Eu deveria era me abrir de vez
e deixar assomar
no espaço da catedral
a autêntica Roma do Norte,
com aquedutos do sexo
e as bebedeiras de Baco.
Olho para o lado do Museu Romano e vejo Dioniso
que sai dos cacos do mosaico e restaura a orgia
começada na alcova da mãe dos Gracos.
Lá vem Cláudio e Júlio Agripa
descendo a Hohestrasse
e na Schildergasse faz compras Júlio César.
Cleópatra
veste peles de onças brasileiras
no Hansen
e Brutus compra frios no Kaufhof.
Eu sei que eles são nobres e eu sou bárbaro,
eu sei que eles são muitos e eu sou torto,
eu sei que eles estão vivos
e eu é que estou morto diante de seus sarcófagos.
Quem é a princesa que ali entre de blue jeans? quem
o duque de kodak diante da camponesa? quem
a marquesa que usa avon nos supercílios? quem
o príncipe de sacolas surrupiando postais? quem
o duque em pé bebendo coca-cola? quem
o arcebispo que abocanha o sanduíche? quem
o abade e sua salsicha?
— Que carnaval é esse no adro profano-e-sacro?
onde o hippie cardeal turista
beija a freira namorada no portal,
enquanto a urina das cervejas escorre sob as mesas
por underground canais?
Pouco adiante, a pornoshop: até o pecado, enfim,
foi liberado nesse reino
e o orgasmo solitário tem máquinas de borracha
e o prazer tem seu salário.
E se a Igreja tem dois, três Papas,
os infiéis já vendem bulas e maconhas em suas portas.
Julgaria estar na Idade Média
não fossem os jornais expostos na estação,
a greve, o terrorismo e a inflação.
Nesta praça tudo é possível.
E aqui a criança e o adulto refazem
insanamente
o eterno poema-igreja.
E já pareço Colombo
viajando pelo avesso,
indo a leste pelo oeste,
chegando à América surpreso.
Talvez devesse confessar
que ao invés do incauto marinheiro
sou explorador pedestre
Marco Pólo
que regressa das muralhas da China
com os olhos cheios de inventos
não para as cortes de Veneza,
mas para os morros de Minas.
— O que é isto? pergunta o alemão
em sua terra perdido
e já convertido em turista.
— É isto história, insônia
ou memória do Brasil-Colônia?
E eis que ouço qualquer coisa
entre remorso e samba-enredo:
é a liberdade tardia
tardando desde o começo.
Lá vem Chico Rei, escravo ousado
puxando seu congado, lá vem Chica da Silva
brincando de rainha
e num barco de papel
num lago de Diamantina
penteando a carapinha.
E vêm índios e jesuítas
com o Marquês de Pombal
iluminando o universo
do meu secular quintal
dançando o maracatu,
onde não podem faltar
as bandas de pau e corda
e os pífaros de Caruaru.
Lá vem a ala das baianas tropicalistas,
dos ingênuos marxistas, das raposas populistas,
dos tenentes udenistas, travestidos de golpistas,
guerrilheiros de Ipanema, retaguarda vanguardista,
batendo tarol e surdo
seguidos de brasilianistas
— tomando nota de tudo.
Aplausos caem da arquibancada:
são investidores estrangeiros
turistas
economistas
que aplaudem interesseiros
o samba atravessado
— do milagre brasileiro.
E o povo-marginal, com tal arrebatamento,
mal se contém atrás
— do cordão do isolamento.
Que arqueologia fantástica!
que carnaval de datas!
que anacronia de máscaras!
Esta, a plaza mayor da história,
o grande sertão europeu,
a pororoca dos tempos
e a festa tola dos reis.
E neste poema-avenida,
que já assumiu forma vária:
já foi templo, já foi rio,
já foi livro, foi museu,
foi infância e foi batalha,
não estranha que essa igreja
convertida em palco e praça
agora assista ao desfile
vestida de Candelária.
E esbaforida
aturdida
irrompe na avenida
a Escola dos Desunidos da História.
A alegoria é de Picasso,
de Da Vinci a fantasia,
o enredo exorbitante
é de Karl Marx e Dante.
Rasputin pensa que é Papa,
Maquiavel, arlequim.
Quem é que puxa a escola
Será Zapata ou Zumbi?
Antonieta — a Rainha,
é par constante de Spartacus.
Joana D'Arc com a bandeira
vem na ala das baianas.
Rabelais é o mestre-salas.
Os guerreiros de Alexandre
já rebolam sem recalque
e os elefantes de Aníbal
atravessam o samba e os Alpes
tirando aplausos do gelo.
Franco aparece em cena
travestido em corno manso
e Salazar — outro astro
beija a testa de Fidel
fingindo que é Inês de Castro.
Nijinski comanda o frevo,
Stravinski o berimbau,
na bateria Beethoven
no repenique vem Bach
fazendo o povo sambar.
— Que orgia é essa?
— É assim o carnaval em Colônia?
— Existe um tal europeu arrebatamento?
Ou é apenas abaixo do Equador que todo santo é pecador?
— Que pode um europeu pensar
de um cronista que confunde seu país,
que não passa, em Paris, de um persa,
ou um Santos Dummont aéreo
desastrando a Torre Eiffel
— com seu frágil 14-Bis?
E já ao fundo se esvaem
o bloco dos exilados, o grêmio recreativo
dos políticos cassados, o rancho
dos torturadores e outros blocos de sujos
cruzando o canal das manchas,
chegando do outro lado, exorcizando no presente samba
o futuro sempre ausente
— e o recalcado passado.
E o espetáculo se encerra
da forma como começa:
senhores de chapéu-coco,
bengala, luvas, sorrisos,
saúdam o povo e turistas
e vão varrendo na gente
confetes e cicatrizes.
Parece, foi sempre assim:
o aplauso, a glória, a euforia
e depois o anonimato
na vala comum dos dias.
Primeiro o ideal, a luta,
depois o luto e o exílio.
Um dia, o perdão torto, a anistia,
onde o criminoso perdoa a vítima,
mas não engana o que está morto.
Perder
é carregar no corpo
a história da morte em vida.
Ganhar
é, no trono, estar faminto
sobre os detritos da glória.
No futuro
abrindo baús velhos e mágoas
alguns se perguntarão
movendo as cinzas do medo:
— quem era o porta-estandarte?
e qual era o samba-enredo?
Arqueólogos
virão desenterrando da avenida
odaliscas e utopias,
piratas e guerrilhas,
havaianas e manifestos,
toureiros e caveiras
e por mais que recomponham
os cacos e detritos
reinterpretando os mitos,
não refarão jamais os sonhos de Dionísio e Baco
nos mosaicos de Pompéia destruída.
Comentário do pesquisador
Esta é uma parte do poema "A Catedral de Colônia", todo ele com alusões e trechos esporádicos relacionados a ditadura militar brasileira e a vida no país durante o período.