CANTO PARA RENASCER
Dá-me tuas mãos de ausência, Para Antônio
irmão, Benetazzo, assassinado.
desde a profunda escuridão
de tua dor, sepultada "Sube a nacer conmigo,
por séculos de mentira. hermano."
Pela palavra Neruda
verso vazado,
espada de sol
e centelha ,
te resgatarei
do chão dos mortos.
Em minha boca
de clamores e silêncios
retomas nesta hora tardia
do tempo que te sucede,
a lenta substância dos rios.
Por teus próprios passos
retornas das cinzas
que a morte te impôs.
Rebelado e incorpóreo
visitas os depósitos murados
pelas baionetas do Tempo.
Sob os olhos engatilhados
dos fuzis,
recolhes entre os destroços
do sonho de Liberdade
que perseguias,
retalhos de esperança,
antigos relâmpagos
sem luz e sem urgência,
os sapatos desatados
de teus irmãos
de marcha e de massacre,
a dor,
o canto devorado
pelo silêncio dos quartéis,
essa intensa matéria-prima
de mel e fulgor
que nutre a vida humana
e a humana resistência.
E adivinho, com as pupilas gastas
pela voracidade dos refletores,
teu coração recobrando a surda força
dos vulcões e o sangue
- lava submetida -
voltando a fluir entre os ossos.
Do fundo deste rio
de palavra e agonia
que desatei,
vislumbro tuas mãos
pássaros renascidos
a recortar o espaço
em madeira e memória,
a convocar sobre a tela
do tempo que testemunhas,
a multidão inumerável
de violetas, gerânios,
rosas, ibiscos, jasmins,
o sangue breve dos cravos,
a cor profunda do barro
que a mão humana plantou,
a funda espera do Povo,
a marcha do Homem Novo
que o Homem Novo sonhou.
E martelo
um canto de força
que sobe do fundo,
da raiz dos homens,
um canto na praça
traçado na marcha
do Povo sem nome:
um canto para renascer.
Recolho teus passos.
As marcas deixadas,
no muro e no peito,
os dedos feridos,
as mãos, por fim,
recompostas
e te entrego ao Povo
com um verso de aço
e pungência:
Antônio Benetazzo,
o que amava a pintura
e foi assassinado,
o acendedor de meteoros,
contra a noite,
contra a morte
está entre nós e permanecerá!
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. A segunda edição de “Poemas do povo da noite” (São Paulo, Fundação Perseu Abramo e Publisher Brasil, 2009) inclui o livro “Água de rebelião”, publicado originalmente em 1983. No texto introdutório da edição de 2009, intitulado “Explicação necessária”, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). Após a reprodução de ilustrações de Cerezo Barredo Dial, que constam na primeira edição do livro, a segunda edição apresenta uma dedicatória: “Estes poemas permanecerão ardendo para guardar a memória de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck Machado, assassinados pelos carrascos da ditadura enquanto dormiam”. Logo a seguir, há uma explicação: “Estes poemas tratam de homens reais, de torturas reais, de assassinatos reais ainda impunes” (TIERRA, 2009, p. 169).