CANÇÃO DOS VINTE ANOS
Aos marimbondos do sótão,
cúmplices de meu tempo.
Hoje, são apenas vinte anos.
A Polícia Política bate à porta,
rua Tavares Bastos 11, Catete.
Pela fresta da janela,
vejo em seus óculos escuros
que vieram trazer o meu presente.
Mas ninguém conhece um poeta
que escreve livros clandestinos
sem o crivo da censura,
sem a anuência do poder,
sem a propaganda ufanista.
A dona da hospedaria recebe meus visitantes
com incrível amabilidade.
O antigo sobradão é revistado.
Pelos fundos ninguém pode escapar.
Os quartos são revirados,
meu guarda-roupa violado,
os homens farejam tudo,
mas ninguém sabe dar notícias
do poeta marginal,
procurado pelos esconsos.
Subo ao sótão,
converso com os marimbondos,
digo que sou de São Mateus,
que trago notícias de seus parentes
dos velhos casarões do Porto.
Vejo meus fantasmas
e decreto vinte minutos
de silêncio tumular.
Depois, como os cantos das unhas,
mastigo versos na memória,
imploro ao anjo da guarda
enquanto trituro sonhos.
Meus poemas estão a salvo,
escondidos dentro do colchão,
despercebidos dos cães do demo
que farejam pela casa
interrogando as paredes.
Ninguém sabe do ocorrido,
ninguém fala mais que o necessário,
ninguém acredita que ali
esconde-se um poeta procurado.
Ouço passos na escada,
meu coração dispara.
— O sótão é infestado.
Ninguém nunca se atreveu…,
diz dona Glória, coitada.
Os agentes federais morrem de medo
desses inofensivos bichinhos
que passeiam em meu rosto
e se embaraçam em meus cabelos
querendo saber notícias
dos parentes distantes,
meus cúmplices nesta jornada.
A Polícia Política
finalmente se dá por vencida.
Alívio no sobradão
de uma rua sem saída.
Desço do meu esconderijo
feito gato escaldado,
agradeço aos marimbondos
que me permitiram o direito
de continuar existindo
ao menos por mais um dia
nesta Cidade Maravilhosa.
É hora de mudar de endereço,
de me esconder por uns tempos
na rua Taylor 11,
na Lapa,
entre bêbados,
prostitutas
e Madame Satã,
num outro mundo proscrito,
num outro casarão infestado.
A dona da hospedaria
parece que viu um fantasma.
Nada tenho que pagar.
— Por favor, desapareça!
— Por favor, não volte mais!
— Por favor, não me comprometa!
Estou novamente cambaleando
pelas ruas, negando que sou
o poeta panfletário
procurado pelo regime
enquanto a cidade canta
em homenagem a Carmem Miranda:
— "Que grilo é esse,
vou embarcar nessa onda…",
e apressado,
como de costume,
escrevo,
escrevo,
escrevo
esta canção comemorativa,
pelas ruas da cidade
que me acolhe como a um filho
clandestino que vive em fuga.
Hoje, são apenas vinte anos,
e só a Polícia Federal
se lembrou de mim.
Confesso que jamais apagarei
este acontecimento em minhas retinas…
Rio de Janeiro, 11.2.72