CANÇÃO AOS VENCIDOS
Cantar a Liberdade,
com a voz entrecortada
sem os grilhões na garganta,
sem os acordes em dor maior
que lhe vazam o peito,
é cantar a vida
que nos permite a aventura…
Cantar a Liberdade
diante do carrasco,
que lhe cospe nos olhos
e lhe faz lamber os excrementos
pelos cantos das salas,
é cantar a juventude
que carregamos nos ombros.
Cantar a Liberdade
frente o regime tirano,
que lhe faz rastejar pelos becos
impondo o viver genuflexo
aos corpos infantes-febris,
que nem ao menos viveram
os primeiros anos,
é cantar a glória
dos guerreiros mortos
abraçados à sua causa.
Cantar a Liberdade
como um pássaro que voa
pelos céus em tempestade
sem medo do trovão,
sem temer os raios,
sem se assustar com a fúria
dos senhores do mundo,
é cantar a paixão
dos exilados que se foram
ao encontro com a dor
em suas entranhas.
Cantar a Liberdade
no último instante,
frente o pelotão de fuzilamento
que aponta as armas
assassinas dos soldados
para o coração indefeso,
é cantar com a voz
entrecortada de soluço
a provação dos desgraçados.
Cantar a Liberdade
nas passeatas pelas ruas
levando nos braços
os filhos ensangüentados,
que sonhavam com uma vida
de justiça para todos
e felicidade para muitos,
é cantar a esperança
derradeira que germina
sob o chão úmido da pátria
pisoteada pelos coturnos.
Cantar a Liberdade,
quando os homens famintos
retiram das latas de lixo
o alimento dos filhos,
para saciar a fome
que corrói as entranhas
de uma nação possuída
pela miséria absoluta,
é cantar a resistência
dos milhares que resistem
sem direito à cidadania.
Cantar a Liberdade
na porta das fábricas,
que engolem os mutilados,
devorando-lhes os anos,
aviltando-lhes a dignidade,
amputando-lhes a alma
como desprezíveis criaturas,
é cantar a aflição
dos degolados que atentam
contra a própria vida.
Cantar a Liberdade
frente o mar revolto
que lhes afoga os sonhos,
levando-os para as profundezas
da legião de desaparecidos
sem cruz,
sem nome,
sem notícia,
sem direito à sepultura,
é cantar a solidão
dos proscritos que apodrecem
no fundo fétido dos cárceres
implorando por um tiro
para atenuar os anos.
Cantar a Liberdade,
quando centenas de mortos
são procurados pelos parentes
frequentadores dos necrotérios,
que imploram aos legistas
pelo atestado de óbito
dos corpos que lhes pertencem,
é cantar aos enlouquecidos
que gritam frente o espelho…
Cantar a Liberdade
diante do tempo de hoje
é cantar uma canção
clandestina entre os lábios
em homenagem aos vencidos.
Rio de Janeiro, 13.7.72