4.
Esta fome maior dentro de nós
uma sede insaciável
uns penares
no peito daqueles que têm olhos,
de todos que têm medo
de um silêncio abissal
sobre esse horror.
Esta guerra de ferro ou de amianto
na garganta de todos os que sabem
como um disparo
uma vontade larga
de desfraldar bandeiras que não estas,
saciar todas as fomes:
as de carne
e estas outras de amor e de justiça.
Nalguma rua, uma criança chora.
Em arrozais longínquos
uma rosa de sangue e amarelo
criva de espanto os olhos de um soldado.
Há alguém que grita
num recinto exíguo.
E um outro, esse já ido,
que não sabe
deste canto nascido de seu gesto.
Desse não falo
pois um canto maior que minha boca
erguerá por todos
seus louvores.
As pupilas abertas para o nada
passeio lento na trincheira morta
onde abutres de farda e de fuzil
investigam caraças silenciosas
tatuadas de verde e podridão.
As mãos abertas
dos que não puderam.
O peito aberto
dos que não venceram.
Os olhos carcomidos
ventres rubros
e no ouro de um trigo
ensanguentado
esse sopro de morte e de vileza.
Não vejo mais que treva
em meu ofício.
Não vejo mais que sombra
no roteiro cansado
da memória.
Os filhos que não tenho
e não terei
me assustam com seus corpos projetados
nesta hora de escuro
e de agonia.
Comentário do pesquisador
O fragmento em tela é a quarta parte entre as cinco que compõem o poema "Breve memória", escrito por Caio Fernando Abreu em 13 de outubro de 1969, e é dedicado ao jornalista Antônio Bivar, amigo do autor. O eu-poético destaca o desejo, apesar da ausência, de construir uma relação amorosa a partir da integralização de corpos e de almas. O poema foi escrito por Caio durante o período em que esteve na Casa do Sol, chácara da escritora e amiga Hilda Hilst, onde o autor ficou recluso após perseguição da ditadura militar. Esse e outros motivos nos levam a considerar que há uma relação muito próxima entre o autor e a voz poética do texto, já que ambos foram afastados forçosamente de suas relações cotidianas e impedidos de viver seus afetos. Distanciado por esse contexto de opressão e guerra, “onde abutres de farda e fuzil / investigam caraças silenciosas”, o eu-poético denuncia o silêncio e a vileza da sociedade frente “as mãos abertas / dos que não puderam. / O peito aberto / dos que não venceram”. Logo, acreditamos que o poema de Caio Fernando Abreu estabelece fortes referências aos Anos de Chumbo da ditadura militar.