Auto do frade (fragmentos)

João Cabral de Melo Neto

Da cadeia à Igreja do Terço

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Não se parece a este o cortejo

   de alguém a caminho da forca.
—— Parece mais bem procissão,

   Governador que vem de fora.

—— Que gente que veio na frente,

   bandeira, padres, gente de opa?

—— São os irmãos da Santa Casa,

   que se diz da Misericórdia.
—— Quem são os que passam depois

   de roupas sinistras mas várias?

—— São os escrivães, mais os meirinhos:

   não abrem mão de suas toucas.

—— Outros conheço de uniforme,

   são da milícia e são da tropa.

—— Para que trazer tanta força

   contra um frade doente e sem forças?

 

UM OFICIAL:

—— Que ninguém se aproxime dele.

   Ele é um réu condenado à morte.

   Foi contra Sua Majestade,

   contra a ordem, tudo que é nobre.

   Republicano, ele não quis

   obedecer ordens da Corte.

   Separatista, pretendeu

   dar o Norte à gente do Norte.

   Padre existe é para rezar

   pela alma, mas não contra a fome.

   Mesmo vestido como está,

   com essa batina de monge,

   para receber seu castigo

   é preciso que ele se assome.

   Que todo o cortejo avance!

   Temos que chegar ainda longe.

 

DOIS OFICIAIS:

—— Este passo está muito lento.

   É de procissão, não de guerra.

—— Vamos como podemos. Ninguém

   disse que o cortejo tem pressa.

—— Nesse andar de frade jamais

   chegaremos às Cinco Pontas.

—— Ao juiz cabia dar o ritmo.

   Porém não quis vir até a festa.

—— Isto aqui não é procissão,

   não tem por que o andar de reza.

—— Então o melhor é dizer isso

   a quem todo o cortejo regra.

—— Andar como padre é dar vez

   à gente baixa, que protesta.

—— Melhor pois que corra o cortejo,

   com passo de assalto, de guerra.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— No centro, um santo sem andor

   caminhando, é um homem sereno.

—— Andor sem andor, e esse santo

   pisando o empedrado terreno.

—— Ele jamais aceitaria

   que alguém o carregasse em ombros.

—— Na tão estranha procissão

   é o santo que anda, e anda aos tombos.

—— Tudo tem de uma procissão

   sem cantoria e lausperene.

—— Há mesmo tropas desfilando,

   que por dever o Santo prende.

—— Levam-no como se levassem

   algum Bispo a missa solene.

—— Este vai a outro altar-mor,

   e seguido de mar de gente.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Ei-lo passa leve e lavado

   como se fosse a uma lição.

—— Vou pedir que me dê a bênção

   e depois beijar sua mão.

—— Não deixarão chegar onde ele,

   há um eriçado paredão.

—— Na procissão, está na cela,

   pois não mudou sua condição.

—— Só quem é grade da prisão

   poderá falar-lhe: os soldados.

—— Só quem faz muro de prisão

   poderá ser abençoado.

—— E só a gente que o leva à forca

   verá de perto o enforcado.

—— Mas não creio que a nenhum deles

   interesse sequer tocá-lo.

 

O MEIRINHO:

—— Vai ser executada a sentença de morte natural na forca, proferida contra

   o réu Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Na procissão que está passando

   há muitas damas para um preso.

—— Fácil tomarão sua bênção

   se isso estiver nos seus desejos.

—— Mas será somente por piedade

   que alugam balcões no trajeto?

—— Talvez seja até por piedade:

   mas no Carnaval têm os mesmos.

—— A procissão é um espetáculo

   como o Carnaval mais aceso.

—— Não há música, é bem verdade,

   ainda não se inventou o frevo.

—— Mas no cortejo que assistimos

   há mais luxo do que respeito.

—— Querem ver o réu, mas de cima,

   é a atração pelo que faz medo.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Por que será que ele não fala,

   nem diz nada sua boca muda?

—— Senhor que ele foi das palavras,

   não há uma só que hoje acuda.

—— Contaram-me que na cadeia

   lhe haviam arrancado a língua.

—— Pois, se ele pudesse falar,

   tropa ou juiz, quem que o detinha?

—— Cortaram-lhe a língua na cela

   para que não se confessasse.

—— Condenado que foi à forca,

   que ao inferno se condenasse.

—— Não fala porque lhe proibiram

   na cela onde as caveiras limpas.

—— Os muros que o tinham na cela

   são agora essas togas, batinas.

—— Lá não tinha com quem falar,

   as paredes nem eco tinham.

 

FREI CANECA:

—— Se é procissão que me fazem,

   mudou muito a liturgia:

   não vejo andor para o santo,

   nem há nenhum santo à vista.

   Vejo muita gente armada,

   vejo só uma confraria.

   E tudo é muito formal

   para ser uma romaria.

   Talvez seja só um enterro

   em que o morto caminharia,

   que não vai entre seis tábuas,

   mas entre seis carabinas.

   Irmãos da Misericórdia,

   com sua bandeira e insígnias,

   me acompanham no desfile

   no andar triste de batinas,

   com passadas de urubu

   como sempre eles imitam,

   o andar de grua dos padres

   e da gente da justiça.

   E essa tropa de soldados

   formados para ordem unida,

   que cerca o morto, não vá

   escapar da cerca viva,

   pendurada pelas casas

   ou de pé pelas cornijas.

   Dessa gente sei dizer

   quem Manuel e quem Maria,

   quem boticário ou caixeiro,

   e sua mesma freguesia.

   Cada casa dessas ruas

   é também amiga íntima,

   posso dizer a cor que era,

   que no ano passado tinha.

   E essa gente que nas ruas

   de cada lado se apinha

   (neste estranho dia santo

   em que ninguém comercia),

   a gente que dos telhados

   tudo o que vai vê de cima.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Por que é que deixou de falar?
   Estávamos todos a ouvi-lo.

—— Ao passar estava falando,

   vinha conversando consigo.

—— Por que agora caminha mudo

   se estava falando a princípio?

—— Decerto o forçaram a calar-se.

   Até os gestos lhe são proibidos.

—— Fazem-no calar porque, certo,

   sua fala traz grande perigo.

—— O que lhe ouvi na rua do Crespo

   foi "mar azul" e "sol mais limpo".

—— Receiam que faça falando

   desta procissão um comício.

—— Dizem que ele é perigo, mesmo

   falando em frutas, passarinhos.

 

A GENTE NAS CALÇADAS:

—— Há pessoas com muito medo

   de toda essa gente na rua.

—— Muita gente em ruas e praças

   é coisa que a muitos assusta.

—— Como se se vissem de súbito

   desarmadas, ou mesmo nuas.

—— A gente está com muito medo

   da cheia de gente, da súcia.

—— Mas não temem o Carnaval,

   embora a gente se mascare.

—— Sabem que no Carnaval, toda

   a gente, em mil gentes, se parte.

—— Cada um monta seu Carnaval,

   solto na praça, sem entraves.

   Cada um segue pelo seu lado

   e nada mais há que os engate.

 

 

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