Da cadeia à Igreja do Terço
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Não se parece a este o cortejo
de alguém a caminho da forca.
—— Parece mais bem procissão,
Governador que vem de fora.
—— Que gente que veio na frente,
bandeira, padres, gente de opa?
—— São os irmãos da Santa Casa,
que se diz da Misericórdia.
—— Quem são os que passam depois
de roupas sinistras mas várias?
—— São os escrivães, mais os meirinhos:
não abrem mão de suas toucas.
—— Outros conheço de uniforme,
são da milícia e são da tropa.
—— Para que trazer tanta força
contra um frade doente e sem forças?
UM OFICIAL:
—— Que ninguém se aproxime dele.
Ele é um réu condenado à morte.
Foi contra Sua Majestade,
contra a ordem, tudo que é nobre.
Republicano, ele não quis
obedecer ordens da Corte.
Separatista, pretendeu
dar o Norte à gente do Norte.
Padre existe é para rezar
pela alma, mas não contra a fome.
Mesmo vestido como está,
com essa batina de monge,
para receber seu castigo
é preciso que ele se assome.
Que todo o cortejo avance!
Temos que chegar ainda longe.
DOIS OFICIAIS:
—— Este passo está muito lento.
É de procissão, não de guerra.
—— Vamos como podemos. Ninguém
disse que o cortejo tem pressa.
—— Nesse andar de frade jamais
chegaremos às Cinco Pontas.
—— Ao juiz cabia dar o ritmo.
Porém não quis vir até a festa.
—— Isto aqui não é procissão,
não tem por que o andar de reza.
—— Então o melhor é dizer isso
a quem todo o cortejo regra.
—— Andar como padre é dar vez
à gente baixa, que protesta.
—— Melhor pois que corra o cortejo,
com passo de assalto, de guerra.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— No centro, um santo sem andor
caminhando, é um homem sereno.
—— Andor sem andor, e esse santo
pisando o empedrado terreno.
—— Ele jamais aceitaria
que alguém o carregasse em ombros.
—— Na tão estranha procissão
é o santo que anda, e anda aos tombos.
—— Tudo tem de uma procissão
sem cantoria e lausperene.
—— Há mesmo tropas desfilando,
que por dever o Santo prende.
—— Levam-no como se levassem
algum Bispo a missa solene.
—— Este vai a outro altar-mor,
e seguido de mar de gente.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Ei-lo passa leve e lavado
como se fosse a uma lição.
—— Vou pedir que me dê a bênção
e depois beijar sua mão.
—— Não deixarão chegar onde ele,
há um eriçado paredão.
—— Na procissão, está na cela,
pois não mudou sua condição.
—— Só quem é grade da prisão
poderá falar-lhe: os soldados.
—— Só quem faz muro de prisão
poderá ser abençoado.
—— E só a gente que o leva à forca
verá de perto o enforcado.
—— Mas não creio que a nenhum deles
interesse sequer tocá-lo.
O MEIRINHO:
—— Vai ser executada a sentença de morte natural na forca, proferida contra
o réu Joaquim do Amor Divino Rabelo, Caneca.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Na procissão que está passando
há muitas damas para um preso.
—— Fácil tomarão sua bênção
se isso estiver nos seus desejos.
—— Mas será somente por piedade
que alugam balcões no trajeto?
—— Talvez seja até por piedade:
mas no Carnaval têm os mesmos.
—— A procissão é um espetáculo
como o Carnaval mais aceso.
—— Não há música, é bem verdade,
ainda não se inventou o frevo.
—— Mas no cortejo que assistimos
há mais luxo do que respeito.
—— Querem ver o réu, mas de cima,
é a atração pelo que faz medo.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Por que será que ele não fala,
nem diz nada sua boca muda?
—— Senhor que ele foi das palavras,
não há uma só que hoje acuda.
—— Contaram-me que na cadeia
lhe haviam arrancado a língua.
—— Pois, se ele pudesse falar,
tropa ou juiz, quem que o detinha?
—— Cortaram-lhe a língua na cela
para que não se confessasse.
—— Condenado que foi à forca,
que ao inferno se condenasse.
—— Não fala porque lhe proibiram
na cela onde as caveiras limpas.
—— Os muros que o tinham na cela
são agora essas togas, batinas.
—— Lá não tinha com quem falar,
as paredes nem eco tinham.
FREI CANECA:
—— Se é procissão que me fazem,
mudou muito a liturgia:
não vejo andor para o santo,
nem há nenhum santo à vista.
Vejo muita gente armada,
vejo só uma confraria.
E tudo é muito formal
para ser uma romaria.
Talvez seja só um enterro
em que o morto caminharia,
que não vai entre seis tábuas,
mas entre seis carabinas.
Irmãos da Misericórdia,
com sua bandeira e insígnias,
me acompanham no desfile
no andar triste de batinas,
com passadas de urubu
como sempre eles imitam,
o andar de grua dos padres
e da gente da justiça.
E essa tropa de soldados
formados para ordem unida,
que cerca o morto, não vá
escapar da cerca viva,
pendurada pelas casas
ou de pé pelas cornijas.
Dessa gente sei dizer
quem Manuel e quem Maria,
quem boticário ou caixeiro,
e sua mesma freguesia.
Cada casa dessas ruas
é também amiga íntima,
posso dizer a cor que era,
que no ano passado tinha.
E essa gente que nas ruas
de cada lado se apinha
(neste estranho dia santo
em que ninguém comercia),
a gente que dos telhados
tudo o que vai vê de cima.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Por que é que deixou de falar?
Estávamos todos a ouvi-lo.
—— Ao passar estava falando,
vinha conversando consigo.
—— Por que agora caminha mudo
se estava falando a princípio?
—— Decerto o forçaram a calar-se.
Até os gestos lhe são proibidos.
—— Fazem-no calar porque, certo,
sua fala traz grande perigo.
—— O que lhe ouvi na rua do Crespo
foi "mar azul" e "sol mais limpo".
—— Receiam que faça falando
desta procissão um comício.
—— Dizem que ele é perigo, mesmo
falando em frutas, passarinhos.
A GENTE NAS CALÇADAS:
—— Há pessoas com muito medo
de toda essa gente na rua.
—— Muita gente em ruas e praças
é coisa que a muitos assusta.
—— Como se se vissem de súbito
desarmadas, ou mesmo nuas.
—— A gente está com muito medo
da cheia de gente, da súcia.
—— Mas não temem o Carnaval,
embora a gente se mascare.
—— Sabem que no Carnaval, toda
a gente, em mil gentes, se parte.
—— Cada um monta seu Carnaval,
solto na praça, sem entraves.
Cada um segue pelo seu lado
e nada mais há que os engate.
Comentário do pesquisador
Em "João Cabral de Melo Neto: uma biografia" (2021), Ivan Marques recupera a "omissão" do poeta no que diz respeito ao seu posicionamento em relação à ditadura militar brasileira. Sendo diplomata, Cabral temia afrontar o regime e, com isso, perder o emprego no Itamaraty. Como afirma o biógrafo: "Para não opinar a respeito da política nacional ou internacional, João Cabral alegava sempre que, como diplomata, não poderia dar declarações" (MARQUES, 2021, p. 388). Embora o poeta tenha evitado qualquer manifestação política de contrariedade ao governo militar na vida pública e na sua obra literária, preferindo, antes, acautelar-se adotando o silêncio, o clima sombrio que domina o "Auto do Frade" – guardadas as devidas diferenças observadas entre a época em que viveu Frei Caneca (1779-1825), personagem central da obra, e o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) – acusa certas semelhanças com a atmosfera nefasta dos Anos de Chumbo. Joaquim da Silva Rabelo, o Frei Caneca, foi um revolucionário que, no início do século XIX, participou da Revolução Pernambucana, defendendo uma república federalista para o Brasil, investindo contra o absolutismo monárquico. Foi preso, torturado e condenado à morte. Na obra cabralina, sobressaem aspectos caracterizadores do momento da execução da pena de morte do frei que contribuem para converter o condenado em vítima, despertando, no leitor, compaixão pelo personagem. É possível enxergarmos aí, sem dúvida, uma forma clara de posicionamento político do poeta. A despeito de esse episódio histórico não ter obviamente nenhuma relação com a ditadura, consideramos significativa a escolha de um tema como esse por parte de Cabral, justamente num momento em que o país assistia a penas de morte sendo aplicadas arbitrariamente aos que ousavam desafiar o poder dos militares.