[Assisti daqui]

Alex Polari

Assisti daqui caírem várias ditaduras:

Portugal, Grécia, Espanha, libertação de Angola, Moçambique, etc.

Golpes de Estado nem se fala

e sempre prá pior.

Greves de fome inumeráveis

discussões políticas sem fim

fraternidade, companheirismo, chatice, aporrinhações

época onde o sleep-bed era tanto prá sonhar

como prá treinar guerrilha.

Notórios torturadores meus e de meus companheiros

ocupam hoje cargos importantes.

Os dois presidentes dos IPMs sobre os sequestros

tomaram destino diverso: um comanda um exército

e o outro, depois de exterminar guerrilheiros

e mandar as mãos decepadas para Brasília

é hoje um democrata.

 

Teve também uma crise de petróleo

uma guerra no Oriente Médio

e agora um tratado de paz;

duas copas do mundo

e uma longa invencibilidade do Flamengo.

Nasceram seis sobrinhos

emagreci

e tendo à perda de cabelo

e das ilusões.

 

Inúmeras vezes me despedi de companheiros

que foram para o exílio, para a liberdade

e depois voltaram para aqui e saíram de novo

enquanto eu ia ficando.

 

Outros foram embora e morreram.

 

Algumas despedidas foram fortes, tristes,

outras redundaram em alívio geral

de ambas as partes.

 

Passei a usar alguns colares e anéis

troquei o gol pela ponta esquerda

e assimilei rapidamente a gíria de cadeia.

Ganhei uma TV a cores que hoje é patrimônio coletivo

onde os canais são mudados por votação democrática

vi alguns filmes interessantes

e se mudei quase todos os pontos de vista sobre o mundo

continuo preocupado com as mesmas coisas.

 

Vivo assim há mais de oito anos.

Fui condenado duas vezes à prisão perpétua

depois a 74 anos

pleiteio uma redução para 14

que permitirá meu livramento condicional.

 

Não conheço o calçadão de Copacabana

muita gente nova prá conhecer

amores vividos,

curtidos, suportados

cada caso acrescentando

um fiapo de humano que faltava.

 

Até o mais fanático de nós

compreendeu que todo o ardor pela causa

não substitui o crepitar de carne suave

junto a uma mulher que se ama

por cinco horas ou pela vida toda.

 

Estranha revelação: isso não compromete

o empenho pela própria luta

e a revolução se faz assim,

de pequenas descobertas

como a de que um corpo não é um mero envólucro

involuntário lucro pela venda de desejos;

fronteira apenas consentida

de ideias elevadas e sentimentos nobres.

 

O corpo também sente.

 

Nesse ritmo teve eleições

a Oposição Liberal cresceu.

Muitos se reconverteram à democracia

depois de um tempo

em que o silêncio sobre nossos cadáveres

foi uma virtude pública.

 

Nossas pequenas falhas

foram se superando

no artesanato do dia a dia.

Por exemplo: no começo eu era

incapaz de levar uma panela.

 

Em cada prisão,

as folhas de outono

insistiram em cair na primavera.

 

Um dia meu pai quase morreu de trombose

e minha irmã cursou uma faculdade inteirinha de medicina

enquanto eu cumpria minha pena

 

Vi o Milagre do "Boom" se fuder

a calça boca de sino cair em desuso
semelhante ao de certo discurso político

mais gasto que o brim com que um dia

brindamos o pó da estrada

não pretendo frequentar o Baixo Leblon

meus estudos são incompletos

meu estado é de inquietação permanente

minha capacitação profissional é nenhuma

meu tédio é relativo

minha vontade de viver é enorme

e atualmente escrevo poesias.

 

Casei preso

me desquitei preso

tive vários romances breves

outros duradouros

pensei em suicídio.

 

Esperava sair logo

mas há meses que a redução de minhas penas

se arrasta num imenso salão de sinteko

onde uns velhinhos togados

com ares de bonomia

tragam cigarros mentolados

mijam nas cuecas

pedem vistas intermináveis nos autos

e esperam impacientes a hora do lanche

para comer chá com bolinhos

e esquecer os processos.

 

As chamadas relações afetivas

às vezes me gratificam

às vezes me emputecem

quando o sufoco baixa

levo meu filho pro pátio

e me distraio

 

PS-Não fui anistiado.

Os assassinos de plantão

acham que eu sou um criminoso de sangue.

 

 

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— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

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