AS PASSEATAS E SEUS MORTOS
As passeatas pelas ruas
carregam nos braços os mortos.
Uns com o sangue ainda quente
a escorrer pelos dedos;
outros em fotografias
sob o calor das mãos
em riste para que todos
observem aquelas vidas
levadas sem justificativa
ao total esquecimento…
As palavras explodem
na boca dos rebelados,
com gritos de amor
e piedade entre os homens
perguntando por notícias
dos desaparecidos,
indagando pela culpa
para tanta crueldade,
querendo saber do crime
cometido para serem
privados da existência:
— Onde está meu marido?
— Onde está meu menino?
— Onde esconderam o corpo?
As bocas incansáveis perguntam
aos ouvidos incrédulos
sem resposta como alento
às almas em angústia
e aos corações sofridos.
Os deuses da Liberdade
varrem as ruas com o sopro
da vida sobre os mortais
para que as passeatas
possam passar pelos caminhos
sem o menor pressentimento
da morte numa esquina
ou nas covas distantes,
e levem envoltos nos braços
os meninos esvaídos,
enquanto a dor, como prova
da existência da vida
dos que perderam o direito
de continuar existindo,
se extinguirá como o éter.
As passeatas com os fantasmas
vão deixando pelas ruas
seu recado de inquietação,
suas dúvidas corrosivas,
seus lamentos de piedade.
Mas ninguém lhes dá ouvidos,
não encontrarão resposta
para os pedidos impossíveis,
enquanto os olhos espreitam
aquelas criaturas que arrastam
os cadáveres desengonçados,
anotando os endereços
para que sejam procuradas
e possam caminhar nos mesmos
caminhos dos que se foram
na seqüência da provação
que vai invadindo as almas
dos que nunca encontrarão
a própria sombra na calçada.
Uns rezam com os terços
de madrepérola nas mãos;
outros comem as pontas
dos dedos em aflição;
outros imploram aos céus
que não tenham o mesmo destino;
outros jogam pedras
como a afugentá-las ao longe;
outros rogam-lhes pragas
pelos séculos de existência;
outros acompanham os passos
olhando pelas frestas;
outros escrevem poemas
em louvor às dores;
outros apontam as armas
contra as vidas de infortúnio.
As passeatas pelas ruas
carregam os destinos
marcados em nosso tempo,
com os mortos-vivos desengonçados
mostrando a própria imagem
a todos
e ninguém.
As passeatas pelas ruas
ficam na memória
dos que choram pelas dores
que não são inteiramente suas.
Ponte Nova/MG, 9.5.70