As passeatas e seus mortos

Maciel de Aguiar

AS PASSEATAS E SEUS MORTOS

 

 


As passeatas pelas ruas 

carregam nos braços os mortos. 

Uns com o sangue ainda quente 

a escorrer pelos dedos; 

outros em fotografias 

sob o calor das mãos 

em riste para que todos 

observem aquelas vidas 

levadas sem justificativa 

ao total esquecimento… 

As palavras explodem 

na boca dos rebelados, 

com gritos de amor
e piedade entre os homens 

perguntando por notícias 

dos desaparecidos, 

indagando pela culpa 

para tanta crueldade,
querendo saber do crime
cometido para serem
privados da existência:
— Onde está meu marido?

— Onde está meu menino?

— Onde esconderam o corpo?

As bocas incansáveis perguntam 

aos ouvidos incrédulos
sem resposta como alento 

às almas em angústia 

e aos corações sofridos. 

Os deuses da Liberdade
varrem as ruas com o sopro 

da vida sobre os mortais
para que as passeatas
possam passar pelos caminhos
sem o menor pressentimento 

da morte numa esquina
ou nas covas distantes, 

e levem envoltos nos braços 

os meninos esvaídos, 

enquanto a dor, como prova 

da existência da vida 

dos que perderam o direito 

de continuar existindo, 

se extinguirá como o éter. 

As passeatas com os fantasmas 

vão deixando pelas ruas 

seu recado de inquietação, 

suas dúvidas corrosivas, 

seus lamentos de piedade. 

Mas ninguém lhes dá ouvidos, 

não encontrarão resposta 

para os pedidos impossíveis, 

enquanto os olhos espreitam 

aquelas criaturas que arrastam 

os cadáveres desengonçados, 

anotando os endereços
para que sejam procuradas 

e possam caminhar nos mesmos 

caminhos dos que se foram 

na seqüência da provação 

que vai invadindo as almas 

dos que nunca encontrarão 

a própria sombra na calçada. 

Uns rezam com os terços 

de madrepérola nas mãos; 

outros comem as pontas 

dos dedos em aflição;
outros imploram aos céus
que não tenham o mesmo destino;
outros jogam pedras
como a afugentá-las ao longe;
outros rogam-lhes pragas
pelos séculos de existência; 

outros acompanham os passos 

olhando pelas frestas;
outros escrevem poemas 

em louvor às dores; 

outros apontam as armas 

contra as vidas de infortúnio. 

As passeatas pelas ruas 

carregam os destinos 

marcados em nosso tempo,
com os mortos-vivos desengonçados 

mostrando a própria imagem
a todos
e ninguém.
As passeatas pelas ruas 

ficam na memória
dos que choram pelas dores
que não são inteiramente suas.

 


                      Ponte Nova/MG, 9.5.70

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