As mãos aflitas

Maciel de Aguiar

      AS MÃOS AFLITAS

 


As mãos trêmulas oferecem 

o destino à leitura
pelos séculos das quiromantes, 

traços que cortam a carne 

indicando os caminhos 

que ainda serão percorridos 

em momentos de pavor 

frente ao tormento eterno… 

A linha da vida,
a do coração,
a da emoção,
misturam-se em cada passo, 

enquanto a Polícia Política 

procura pelos esconsos 

as impressões deixadas 

nas carteiras da escola, 

no corrimão da escada, 

na camisa repleta de sangue, 

no coquetel que foi lançado, 

no livro de cabeceira, 

na bandeira rota esquecida 

no aparelho estourado… 

As mãos dos que escrevem 

seus lamentos para ninguém 

oferecem a dor dos vencidos, 

a aflição dos procurados, 

dos que emprestam a fotografia
aos cartazes
nas esquinas,
nos muros, 

nos postes,
chamando-os de facínoras
sem terem conhecimento 

dos crimes praticados.
Na noite como cúmplice 

as mãos trabalham em silêncio, 

não permitem que os demônios 

se aproximem dos dedos, 

que riscam no almaço 

as confissões de culpa 

do amor amplificado, 

todas numa conspiração 

pelo breu das trevas de hoje, 

deixando o testemunho 

aos que vierem procurar 

a mesma aflição sentida… 

Ninguém poderia impedir 

os sonhos acalentados 

sem as mãos para moldar 

em gestos
e palavras
diante da clandestinidade, 

procurando os destinos 

pelos escombros da dor, 

por onde houver um coração 

pronto a abrir-se
e aquecer os sentimentos 

dos infantes venturosos.
Mãos de heróis cujos corpos 

não tiveram direito
ao menos de serem encontrados, 

mas que deixaram as marcas
espalhadas pelas celas
para que outras em afagos
possam descobri-los no amanhã.
Mãos de mães que escrevem 

longas cartas aos filhos
que nunca mais foram vistos,
mas escrevem,
escrevem,
escrevem,
escrevem
até o enlouquecimento,
sem nunca se importar
com as respostas impossíveis. 

Mãos de estudantes que esmurram 

os ares com a incomensurável 

voluntariedade dos anos, 

atirando pedras, 

jogando paus,
lançando coquetéis
contra o peito dos soldados 

que devolvem o estanho 

fumegante sobre as carnes 

sem o menor constrangimento. 

Mãos de operários que constroem 

as vidas calejadas,
anos e anos a fio,
em busca da felicidade,
vez por outra a amputação 

como recompensa 

e castigo…
Mãos dos que são obrigados 

a cavar suas sepulturas, 

valas abertas nos arrabaldes, 

corpos que são jogados nus 

à espera do tiro
estilhaçando a cabeça
no fundo da última morada. 

Mãos de poetas que imprimem,
imprimem,
imprimem, 

imprimem,
nos mimeógrafos clandestinos,
o testemunho deste tempo 

para os séculos lerem
seu martírio um dia.
Mãos proscritas que deixam 

em cada página dos livros 

pedaços de tantas vidas
em versos espalhados ao vento. 

Mãos que registram a história 

dos destinos traiçoeiros: 

— Mãos de coragem…

— Mãos de rebeldia… 

— Mãos de destemor…   

Mãos que deixam para sempre 

as impressões indeléveis 

para que os olhos um dia 

leiam as suas linhas de hoje. 

As mãos aflitas de uns
acariciam o sofrimento de todos.

 


                      Rio de Janeiro, 7.5.72

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