AS MÃOS AFLITAS
As mãos trêmulas oferecem
o destino à leitura
pelos séculos das quiromantes,
traços que cortam a carne
indicando os caminhos
que ainda serão percorridos
em momentos de pavor
frente ao tormento eterno…
A linha da vida,
a do coração,
a da emoção,
misturam-se em cada passo,
enquanto a Polícia Política
procura pelos esconsos
as impressões deixadas
nas carteiras da escola,
no corrimão da escada,
na camisa repleta de sangue,
no coquetel que foi lançado,
no livro de cabeceira,
na bandeira rota esquecida
no aparelho estourado…
As mãos dos que escrevem
seus lamentos para ninguém
oferecem a dor dos vencidos,
a aflição dos procurados,
dos que emprestam a fotografia
aos cartazes
nas esquinas,
nos muros,
nos postes,
chamando-os de facínoras
sem terem conhecimento
dos crimes praticados.
Na noite como cúmplice
as mãos trabalham em silêncio,
não permitem que os demônios
se aproximem dos dedos,
que riscam no almaço
as confissões de culpa
do amor amplificado,
todas numa conspiração
pelo breu das trevas de hoje,
deixando o testemunho
aos que vierem procurar
a mesma aflição sentida…
Ninguém poderia impedir
os sonhos acalentados
sem as mãos para moldar
em gestos
e palavras
diante da clandestinidade,
procurando os destinos
pelos escombros da dor,
por onde houver um coração
pronto a abrir-se
e aquecer os sentimentos
dos infantes venturosos.
Mãos de heróis cujos corpos
não tiveram direito
ao menos de serem encontrados,
mas que deixaram as marcas
espalhadas pelas celas
para que outras em afagos
possam descobri-los no amanhã.
Mãos de mães que escrevem
longas cartas aos filhos
que nunca mais foram vistos,
mas escrevem,
escrevem,
escrevem,
escrevem
até o enlouquecimento,
sem nunca se importar
com as respostas impossíveis.
Mãos de estudantes que esmurram
os ares com a incomensurável
voluntariedade dos anos,
atirando pedras,
jogando paus,
lançando coquetéis
contra o peito dos soldados
que devolvem o estanho
fumegante sobre as carnes
sem o menor constrangimento.
Mãos de operários que constroem
as vidas calejadas,
anos e anos a fio,
em busca da felicidade,
vez por outra a amputação
como recompensa
e castigo…
Mãos dos que são obrigados
a cavar suas sepulturas,
valas abertas nos arrabaldes,
corpos que são jogados nus
à espera do tiro
estilhaçando a cabeça
no fundo da última morada.
Mãos de poetas que imprimem,
imprimem,
imprimem,
imprimem,
nos mimeógrafos clandestinos,
o testemunho deste tempo
para os séculos lerem
seu martírio um dia.
Mãos proscritas que deixam
em cada página dos livros
pedaços de tantas vidas
em versos espalhados ao vento.
Mãos que registram a história
dos destinos traiçoeiros:
— Mãos de coragem…
— Mãos de rebeldia…
— Mãos de destemor…
Mãos que deixam para sempre
as impressões indeléveis
para que os olhos um dia
leiam as suas linhas de hoje.
As mãos aflitas de uns
acariciam o sofrimento de todos.
Rio de Janeiro, 7.5.72
Comentário do pesquisador
Este poema constitui uma bela síntese da poesia de Maciel Aguiar. Há versos lapidares para o projeto aqui.