Antes dentro

Angela Melim

ANTES DENTRO

 

Amplos quartos brancos. Na argola o linho cheirando a laranja; e a

bacia de louça.

Ai. amor de letras frescas: mentira montar espaço assim sossegado.

Com certeza uma herança (portuguesa) imaginária do passado.

São velhas paredes furadas a bala, manchadas de esterco, cercadas

de porcos. É chão batido com bosta, é corredor de traça, degrau podre.

 

(O objeto antigo é puramente mitológico na sua referência ao passa-

do. Não tem mais resultado prático, acha-se presente apenas para

significar.

 

O objeto antigo significa o tempo.

 

Não se trata, é claro, do tempo real. São os signos ou indícios cul-

turais do tempo que são retomados no objeto antigo. O objeto funcio-

nal só existe na atualidade. O antigo escapa à exigência de funcio-

nalidade. Responde a testemunho, lembrança, nostalgia, evasão. Eva-

são da cotidianidade. Ocorre no presente como se tivesse ocorrido

outrora. Mergulha no tempo —regressão. Dá-se como mito de origem.

O objeto mitológico refere-se à ancestralidade ou mesmo à anterio-

ridade absoluta da natureza.)*

 

Domingo, frascos de cheiro, terrina de doce crespo de ovo. Seios

sardentos decotando bordado inglês e alemão. Cavaleiros pálidos de per-

fis lânguidos e narizes retos. Tristes os olhos galegos, fundos e negros.

Nossos homens miúdos e sujos. Bocas sem dentes, bigodes ralos, sonhos

baços.

 

(As classes sociais menos favorecidas (camponeses, operários), "os

primitivos”, não têm o que fazer com o velho e aspiram ao funcional,

em relação infantil e ilusão de domínio. Para eles, o objeto funcio-

nal não tem função, mas virtude, é um signo.

 

O “civilizado” nostálgico, no processo de aculturação impulsiva e de

apropriação mágica que o impele para madeiras do século XVI ou íco-

nes, capta sob a forma de objeto uma virtude.

 

Mito projetivo em um caso, mito involutivo no outro. O fetichismo é

o mesmo. Mito de domínio, mito de origem: sempre aquilo que falta ao

homem se acha investido no objeto.)*

 

De longe avisam altas palmeiras: houve aqui casa grande, mesa farta.

Vida. Acolhida limpa. Aqui, não faltou nada.

 

(Todo objeto antigo é belo simplesmente porque sobreviveu e com is-

so torna-se signo de uma vida anterior.)*

 

De qualquer forma, o fazendão escarrapanchado na baixada, entre ipê

e primavera.

 

 * Jean Baudrillard, O Sistema dos Objetos.

 

 

Você também pode se interessar por

— Colofão

Coordenação

Marcelo Ferraz (UFG/CNPq)

Nelson Martinelli Filho (IFES/UFES/CNPq)

Wilberth Salgueiro (UFES/CNPq)

Bolsistas de apoio técnico (FAPES)

Juliana Celestino

Valéria Goldner Anchesqui

Bolsistas de pós-doutorado (CNPq)

Camila Hespanhol Peruchi

Rafael Fava Belúzio

Pesquisadores/as vinculados/as

Abílio Pacheco de Souza (UNIFESSPA)

Ana Clara Magalhães (UnB)

Cleidson Frisso Braz (Doutorando UFES)

Cristiano Augusto da Silva (UESC)

Diana Junkes (UFSCar)

Fabíola Padilha (UFES)

Francielle Villaça (Mestranda UFES)

Henrique Marques Samyn (UERJ)

Marcelo Paiva de Souza (UFPR/CNPq)

Mariane Tavares (Pós-doutoranda UFES)

Patrícia Marcondes de Barros (UEL)

Susana Souto Silva (UFAL)

Weverson Dadalto (IFES)

Além dos nomes acima muitas outras pessoas colaboraram com o projeto. Para uma lista mais completa de agradecimentos, confira a página Sobre o projeto.

O MPAC é um projeto de caráter científico, educativo e cultural, sem fins lucrativos. É vedada a reprodução parcial ou integral dos conteúdos da página para objetivos comerciais. Caso algum titular ou representante legal dos direitos autorais de obras aqui reproduzidas desejem, por qualquer razão e em qualquer momento, excluir algum poema da página, pedimos que entrem em contato com a nossa equipe. A demanda será solucionada o mais rapidamente possível.

— Financiamento e realização

© 2025 Todos os direitos reservados