ANTES DENTRO
Amplos quartos brancos. Na argola o linho cheirando a laranja; e a
bacia de louça.
Ai. amor de letras frescas: mentira montar espaço assim sossegado.
Com certeza uma herança (portuguesa) imaginária do passado.
São velhas paredes furadas a bala, manchadas de esterco, cercadas
de porcos. É chão batido com bosta, é corredor de traça, degrau podre.
(O objeto antigo é puramente mitológico na sua referência ao passa-
do. Não tem mais resultado prático, acha-se presente apenas para
significar.
O objeto antigo significa o tempo.
Não se trata, é claro, do tempo real. São os signos ou indícios cul-
turais do tempo que são retomados no objeto antigo. O objeto funcio-
nal só existe na atualidade. O antigo escapa à exigência de funcio-
nalidade. Responde a testemunho, lembrança, nostalgia, evasão. Eva-
são da cotidianidade. Ocorre no presente como se tivesse ocorrido
outrora. Mergulha no tempo —— regressão. Dá-se como mito de origem.
O objeto mitológico refere-se à ancestralidade ou mesmo à anterio-
ridade absoluta da natureza.)*
Domingo, frascos de cheiro, terrina de doce crespo de ovo. Seios
sardentos decotando bordado inglês e alemão. Cavaleiros pálidos de per-
fis lânguidos e narizes retos. Tristes os olhos galegos, fundos e negros.
Nossos homens miúdos e sujos. Bocas sem dentes, bigodes ralos, sonhos
baços.
(As classes sociais menos favorecidas (camponeses, operários), "os
primitivos”, não têm o que fazer com o velho e aspiram ao funcional,
em relação infantil e ilusão de domínio. Para eles, o objeto funcio-
nal não tem função, mas virtude, é um signo.
O “civilizado” nostálgico, no processo de aculturação impulsiva e de
apropriação mágica que o impele para madeiras do século XVI ou íco-
nes, capta sob a forma de objeto uma virtude.
Mito projetivo em um caso, mito involutivo no outro. O fetichismo é
o mesmo. Mito de domínio, mito de origem: sempre aquilo que falta ao
homem se acha investido no objeto.)*
De longe avisam altas palmeiras: houve aqui casa grande, mesa farta.
Vida. Acolhida limpa. Aqui, não faltou nada.
(Todo objeto antigo é belo simplesmente porque sobreviveu e com is-
so torna-se signo de uma vida anterior.)*
De qualquer forma, o fazendão escarrapanchado na baixada, entre ipê
e primavera.
* – Jean Baudrillard, O Sistema dos Objetos.