ÁNGEL
Hoje eu não poderia dormir
sem falar contigo.
Aqui também a noite,
nos nega estrelas há dez anos.
Nasci numa aldeia do norte,
onde as crianças conversam
pelas estrelas com os ausentes.
As estrelas vermelhas que conhecemos
estão mudas.
Possivelmente ardem
nos olhos de uma criança faminta
nas ruas de Madri, desertas.
Falarei ao vento.
Se minha voz não chegar a tempo
— os ventos andam acorrentados em minha pátria —
chegará minha lágrima tardia
como a chuva sobre os penhascos de Espanha.
O que terá sentido tua mãe?
Tua mãe me amamentou com o leite
resgatado da guerra.
Tua mãe é a mãe de meus companheiros:
"Madre Revolución", cantará a língua poderosa
de teu povo.
Voltarás ao ventre da terra-mãe.
Sagrado, teu corpo reúne na negra manhã
de vinte e sete de setembro, o sangue de todos os
mártires.
Aqui, também a primavera está de luto.
Talvez a derradeira chuva
martele no telhado
um canto agudo.
São as lágrimas dos meninos do mundo
que te choram e herdarão teu nome e tua bandeira.
Trago um cheiro de mar para os teus muros.
O sal de meu corpo se fundirá
com o suor, a crença,
a carne de todas as esperanças.
Perdoa, se trago palavras apenas.
A palavra é meu ofício,
a revolta é minha lei.
Hoje eu não poderia dormir
sem falar contigo.
Amanhã estarei com a alma amputada.
Não te prometo que verei, por ti, a manhã absoluta.
Também aqui se morre, nas ruas
e nas prisões.
Mas terá nascido hoje,
do ventre amado da terra,
um menino cigano
de olhos claros que fitará
a Espanha libertada
com a força de mil constelações
submersas em 40 anos de tirania.
(26/09/75)
Comentário do pesquisador
Pedro Tierra é pseudônimo de Hamilton Pereira da Silva. O poema "Ángel" integra a seção “Livro dos fuzilados”, parte do volume “Poemas do povo da noite”. Na página de abertura da seção, consta uma dedicatória: “Aos companheiros Ángel Otaegui, José Humberto Baena Alonso, José Luis Sanches Bravo, Juan Paredes Manot, Ramon Garcia Sanz, assassinados em Espanha”. Na segunda edição desse livro (coeditada pela Fundação Perseu Abramo e pela Publisher Brasil, em 2009), há um texto introdutório intitulado “Explicação necessária”. Nessa introdução, Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) informa: “Os poemas aqui reunidos foram escritos durante os cinco anos de prisão – de 1972 a 1977 – e publicados em volumes separados: Poemas do povo da noite (Ed. Livramento, S. Paulo, 1979), Água de Rebelião (Ed. Vozes, Petrópolis, 1983)” (2009, p. 19). A edição de 2009, que reproduz “Ángel” na página 97, informa que esse poema foi escrito em 26 de setembro de 1975.