Há sangue
quando pontes pontos ponteiros
tecem e destecem a pressa.
Sangue
nos automóveis e estampidos.
Sob tetos aterrorizados.
Sobre o cemitério da praça.
Há sangue
nos gritos e gemidos mortos
entre as paredes do calabouço.
Sangue
debaixo do capuz de chumbo.
Sangue e suor dissimulando
a humilhação dos membros nus.
Há sangue
espalhado com fios, alicates
e macabros instrumentos.
Sangue
tingindo fímbrias da resistência:
absorvendo onírico recurso,
forçando refúgio em outro reino.
Escuta como a cascata canta
e os pássaros revoam em direção
aos penhascos por onde passearemos.
Mais longe se agitam florestas,
mais longe moram ventos e murmúrios
e rios e animais e os mil mistérios
que juntos nós iremos desvendar.
Quando não tiver nada para te dizer,
passarei horas rindo e ouvindo teu riso.
Árvores crescerão no espaço azul.
A natureza nos abrirá seus seios
para mamarmos a seiva da eternidade;
roldanas erguerão música nas manhãs,
bocas abrigarão orvalhos e abelhas.
Não posso, não é possível
falar-te dos caramanchões cobertos de sol
ou do chão debaixo dos girassóis.
Eu me recosto em ossos de irmãos,
em restos de rótulas dilaceradas.
As sepulturas fortalecem os muros
e a noite sepulta os marinheiros.
Rosas em cinzas são convertidas;
casas onde se forjava o novo mundo
se submergiram na merda consumada.
Sobrevivo nos sórdidos porões das galerias
em que escarram os carrascos.
La noche puede durar y durará todavía
El alba es ofício de sobrevivientes.
(Mario Trejo)
Não vou aceitar o sangue no cimento
nem o planeta pendurado
em ganchos de açougueiro.
Se há o terror da tortura permanente,
inda vicejam embarcações e constelações.
Parecem impermeáveis as paredes que me prendem,
irremovíveis as chaves que fecham minha visão.
Todavia, na vasta vigilância da História,
o silêncio chora, a certeza quer cantar.
A aurora amadurece e as mudas esperanças
vislumbram aves que atravessam
a estreita faixa do firmamento.
DOPS de Porto Alegre (RS), 1970