A PALAVRA SUBLIME
Quando a aurora descortina
a copa adormecida das árvores
os duendes acordam os generais
do sono de pedra
para que escrevam a nova Ordem
do Dia que se atreverá
com a claridade frente às trevas.
Os algozes recolhem
os recém-nascidos
jogados ao lixo.
Ouço passos em marcha
fúnebre pelas calçadas
onde dormem os meninos
o sono dos desgraçados…
– Quem os acordará para a vida?
– Quem os acordará para o sonho?
– Quem os acordará para a morte?
Cães vadios uivam
o agouro das estepes;
morcegos sanguinários sobrevoam
o dorso nu dos cadáveres
cambaleantes que passeiam
suas desilusões pelos corredores,
até que o sol desvirgine
as manhãs tão esperadas
pelos que não conseguiram
adormecer diante da morte.
Nos quartéis, as trombetas
saúdam o ofício da dor,
enquanto a cabeça dos condenados
baila sobre a bandeja
a anunciar mais uma vitória
contra o sonho dos que resistem.
Belzebu esconde-se
com medo da ira atroz,
enquanto os que conversam
com o próprio cadáver nas ruas
imploram aos soldados
que lustram os cassetetes
todas as manhãs nas casernas:
– Meu Deus,
tirai da cabeça dos homens
tanta ira assassina!…
Diante dos vencedores,
os corpos nus dos esvaídos
se arrastam pelos espinhos.
Deitam-se em cada vala
aberta pelas próprias mãos
em seu último sofrimento
quando a alvorada acorda
os que lavam as almas,
pássaros levantam vôos
frente o desconhecido
e serpentes injetam veneno
em seus corpos de escamas.
Os relógios das horas mortas
batem ao chamamento do demo,
enquanto os unicórnios
passeiam as lendas
pelas noites de miragens
frente os olhos dos desgraçados,
que repetem em voz alta
que os mortos de hoje
caminharão de mãos dadas
sobre o sangue dos que virão.
Retiro os sete cobertores
e olho pela fresta
da janela do quarto,
rua Correia Dutra 99,
entre boêmios
e bêbados,
e vejo escorrer pelas pedras
das mesmas ruas cansadas
a noite de agonia
que recolheu a mortalha
sobre os corpos desvalidos.
Um manto longo é levado
pelas mãos do regime
que recolhe os que as trevas
deixaram na noite finda.
O sol resplandece no breu
as vidas em desespero.
Escrevo mais um poema,
que a noite seguinte
poderá cobrir
com um manto de chumbo
as cabeças dos mortos,
e nos fazer repetir
pelos cantos dos lábios
a mesma palavra sublime
que ressoa pelos ouvidos
neste tempo de suplício:
– Liberdade,
Liberdade,
Liberdade…
Rio de Janeiro, 27.8.71