A NOITE EM TREVAS
A noite em trevas cai
como pétalas ao chão
sobre os corpos que se afogam
no ácido que queima
as feridas da alma,
enquanto os veios penetram
as entranhas da terra…
A noite em trevas derrama
medo
e aflição
sobre os que se escondem.
O menino trêmulo sonha
com a rua no horizonte
e aperta as pálpebras
à espera dos demônios,
que no fundo do quintal
fustigam com os cornos
os corações venturosos…
Dos casarões de antanho
saem dezenas de querubins
com espadas de luz
para afugentar os soldados
que sangraram o peito
do estudante Edson
com as armas assassinas.
A noite sem pressa ocupa
todos os espaços da dor,
enquanto nas paredes
as fotografias dos ancestrais
estão expostas ao tempo.
Ninguém cobre os olhos,
ninguém se lembra das aflições,
ninguém se livra dos mortos.
No quarto,
o menino sob o manto do medo
derrama suor em bicas,
e recorda-se dos lábios do tio
que comprava e vendia fazendas
sem enfiar a mão no bolso,
e hoje só lhe restam duas porteiras.
Lembra-se ainda da aflição
da prima Luzia,
que deixou no altar
o noivo esperando.
Recorda-se da mão de pelica
da avó Lavínia,
que tecia longos bordados,
enquanto o velho Cercinílio
galopava num cavalo alazão
pelas campinas do Quadrado,
ainda a procura de escravas quilombolas
para os idílios proibidos.
Do pai,
sempre à cabeceira da mesa,
guarda os bigodes,
o tempo ainda não amarelou suas faces…
Nélson,
o irmão mais velho,
no degrau da calçada,
acena triste pela derradeira vez.
A noite cai sobre as lembranças
e encobre com um lençol de breu
os que se escondem.
A mãe,
zelosa de tudo,
com sua toalhinha de linho,
enxuga a testa úmida do menino
que sonha o mesmo sonho
dos que buscam a Liberdade.
A noite derrama o caudal de mistérios
sobre todos os que vivem
as primeiras aventuras.
A noite em trevas
parece que nunca terá fim.
São Mateus-ES, 7.12.68